[N.16 | 2023]

Eu carrego tudo o que sou pelo meu ventre

Analu Cristina

Toda a dor do passado
as sementes germinadas
no útero de minhas avós
nutridas com seu sangue
suas lágrimas e sua força
eu carrego

os frutos de sua carne
galhos
trilhas tortuosas
tronco firme também
Raízes
todos que me compõem
me sustentam
eu carrego

a luz luminosa
que preencheu a escuridão
do ventre de minha mãe
por quatro vezes acesa
por quatro pedaços de nós
reconheço
carrego em mim
com amor

toda a potência de vida
dos filhos que nunca gerei
carrego

a força com que pude criar
em meu ventre
a vida que dei à Luz
feita da vida que tomei para mim
eu carrego
sempre

Mas a profunda invasão
— que além de benditas sementes —
nos trouxe
dor e desespero
frieza e desilusão

Isso
não quero mais carregar

Isso
reconheço
honro
me despeço
Não queremos mais levar.

Acontece que carrego tudo o que sou pelo meu ventre
através dele
por sua existência sã

Útero inteiro

Portal inerente à natureza feminina
onde brotou e foi gerada
tudo o que se considere matéria humana
viva

Muito mais que um órgão
possível travessia
segue pulsante de vida

Possamos
por nossa escolha e por amor
cultivar em nossos ventres
a Fé na vida humana

Gerar futuro para todos nós

Acreditar…

Possamos

Talvez

Quem possa…

Por desconhecer ainda
meios para nos libertarmos dessa sina
carrego comigo
dores e cicatrizes
memórias inacessíveis
gritos tantos
não meus
mas de milhares
mulheres que viveram antes e enquanto em mim
milhares de mulheres
que ainda são violentadas
todo dia
todo santo dia

Todo santo dia
olho por elas
e todo mês
a cada lua
choro lágrimas de sangue
pra limpar tudo isso
que carrego em meu ventre.