[N. 149 | 2025]

Eva [fragmento]

Nara Vidal

Mês de maio era quando a gente coroava Nossa Senhora. Duas filas paralelas subiam as ruas do Centro até chegarmos ao largo da Matriz. As meninas vestidas de virgens ou anjos. Uma menina rica tinha preferência do padre para segurar o estandarte, função de honra. Meu dia de coroar a Virgem Santíssima tinha chegado. A mãe e a vó, muito orgulhosas, se ocupavam dos preparativos como se fosse ceia de Natal. Palminhas da mão juntinhas, filha. Segure entre elas o terço e a rosa branca da Virgem. Não deixe cair, pelo amor do nosso Jesus Cristo. Deixar cair um terço é mau presságio, coisa ruim mesmo, dá até morte na família. Depois de subir as escadinhas cantando mãezinha do·céu, pronta para colocar a coroa sobre a imagem da santa, o terço se prende na renda do meu vestido de anjo e se solta. As pedras, em queda livre, batem e voltam do chão. Uma coreografia assombrosa até a cruz do terço ir parar aos pés do padre, que não permitiu que tocassem os sinos; todos os fiéis saíram da Matriz de cabeça baixa, em sinal da cruz, me olhavam atravessado como se eu tivesse um demônio no corpo. Mãezinha do céu, eu não sei rezar. Só sei dizer quero te amar. Azul é teu manto, branco é teu véu. Mãezinha, eu quero te ver lá no céu. Foi a primeira vez que desejei profundamente que minha mãe morresse. Que fosse para o céu, para o inferno, que me deixasse em paz. Enquanto ela me batia, já em casa, tinha a esperança de que surrasse e expulsasse o diabo junto. O pai, olhos no chão, concordava com a mãe.

Pelo bem do meu filho estamos desconectados, desconhecidos. Ele é um homem bom. Coitado, merecia o amor de uma mãe. Eu me esqueço dele. Passei a apagá-lo da minha rotina feito um exercício. Comecei me lembrando de não pensar nele. Aquela responsabilidade me atormentava tanto. Entregava o menino na escola e, se alguém fizesse graça dele, lá ia eu, coração agarrado nas mãos, carne viva, sofrendo. Nada daquela dor me valia. Não é só a falta de descanso que seca a gente. É a tristeza que, por vezes, nem eles sentem, mas mãe sim, inventa dor, rejeição, amargura, sofrimento, culpa. Como um mantra, passei a me esquecer dele. Um pingo por dia até que, feito aquele farelo de pão na mesa amassado com os dedos, virou poeira.

Quando eu viajava, tinha medo de morrer, de que meu filho ficasse sem mãe. Não por mim, mas sentia por ele. É que a pior das cruzes a carregar é uma criança ficar sem mãe. Veja que triste quadro o meu, sem a minha.

Eu viajava e pensava no que seria dele se eu morresse. Mas minha preocupação era patética. Devemos todos morrer um dia, mas não nos outros. O que seria do meu filho só me preocupava porque eu estava viva, porque pensava em hipóteses de fins abruptos. Quem ia tomar-lhe a tabuada com interesse e perceber que seis vezes sete é o que é, e não outra coisa qualquer? Eu arrancava os cabelos de preocupação, mas não era preciso. Se eu morresse, tudo se apagaria, inclusive minha dor pelo possível sofrimento dele. Claro, o menino talvez sentisse minha falta, mas eu não veria esse show. Não assistiria ao espetáculo de tamanha tragédia. A morte é a única libertação possível! Não se sofre quando se morre. É a liberdade profunda. A única que faz sentido na vida, essa vulgaridade em etapas. A morte é a única felicidade plena e independente.