[N.75 | 2023]

Gravilândia

Patrícia Azevedo da Silva

Quando engravidei, o mundo parou numa espécie de fricção de onde se soltaram uns pós e – earthseeds – caíram na terra.

Lembro-me daquele exame que fiz, em que toda a equipa médica dizia, isto o problema é no andar de cima, e eu entendi logo o que queriam dizer. Estava tão feliz e tão perdida. Eu queria ser mãe desde sempre. Demorei tanto por medo. Tanto medo de repetir as heranças genéticas e moleculares, muscle memory, de toda a linhagem de mães-falha que tinham passado por mim. Eu andava pela rua e só sentia amor. A minha intenção era amor. Havia uma bolha entre mim e o mundo, a minha própria bolsa amniótica, todo o alimento de que eu precisava estava ali. Ganhei consciência do meu corpo. Nunca tinha tido tanta consciência do meu corpo.

O meu maior pânico era o parto. Não saber se as águas tinham rompido, se estava com contracções. Eu achava que seria uma menina, mas logo soube que era um rapaz – ARTUR – e ele veio todo cabeludo, bonito. Eu vi-o sem os óculos, eu do alto da minha miopia, a trazê-lo para tão perto dos olhos, ele é tão mais bonito do que imaginei. Eu sozinha naquela maternidade, dolorida, aquelas enfermeiras idiotas. Eu a ir percebendo aos poucos o trauma que o meu corpo tinha experienciado. Aquele momento-bolha, tu e o teu filho, tu e o teu filho, todas as visitas que vieram e depois tu e o teu filho. E foi tão bom, mas também tão assustador. Sempre o medo de falhar, sempre aquele medo de fazer aquela coisa que fosse deixar as marcas permanentes, como as marcas que vim a aprender que faziam de mim, mim.

Artur é amor, Artur é infinita bondade.

Nós estávamos juntos e era uma delícia, eu já desconfiada, eu queria muito que o Artur tivesse um irmão, eu deixei de comer fruta lavada fora de casa porque achei, vai que… né? A gravidez foi uma raiva. Uma raiva monstruosa. O caos de perder o emprego. O medo de voltar a passar por um parto parecido. O Zé Pedro dos Xutos que morreu no dia em que descobri que tinha diabetes. O colo do útero curto. Os corticoides. O descanso, bed rest, bad rest, porque tudo tinha ficado por fazer, tudo tinha ficado por arranjar e nos primeiros tempos a minha sensação era a de que eu era uma daquelas pessoas que a gente vê nos filmes, aquelas que vão ser operadas, daí a anestesia não pega e elas ficam ali imobilizadas mas o cérebro não para. Era assim que eu me sentia, o cérebro a galope, feito vários cavalos a atropelar o meu corpo, e o corpo imóvel, aquela coisa do tempo a passar e nada preparado para te receber. O sorriso amarelo das pessoas, ah que pena que não é um casalinho… E eu feliz da vida.

Joaquim, o nome que o Artur ajudou a escolher para ti. Um parto santo, eu que te ajudei a sair de mim. Quer puxar o seu filho, perguntou o enfermeiro. Mas posso?! Claro! 4120kg e eu me senti a Kourtney Kardashian. Que diferença faz ser seguida pela diretora da maternidade, hein? Dessa vez já não tive medo que dormisses comigo. Dessa vez já não tinha medo, porque já nasceste numa família, que foi a família que eu construí. Já éramos muitos, já era segura.

Joaquim é música e delicadeza, Joaquim é sonho de outros mundos.