[124 | 2024]

In Vitro [fragmento II]

Isabel Zapata

Escrevo um exercício de memória futura. Vou tecendo os dias que passaram com os que faltam para contar a história que quero que minha água-viva lembre quando for capaz de lembrar. No processo decido também aquilo que quero que ambas esqueçamos, apago a sensação que a solução de glicose me deixou na garganta.

Se uma rede é um conjunto de buracos desenhado para conservar apenas uma fração do vasto mar em que se submerge, aqui o espaço em branco também excede o que foi dito. Por isso estas páginas resistem a ser um diário. Parecem-se mais com um romance em série, uma invenção, uma maneira de clarear a voz.

Na primeira vez que sonho com você, você já caminha e tem o cabelo preto e ondulado. Dança com os punhos fechados, movendo as cadeiras de um lado para o outro. Você é uma menina, e a partir dessa noite me refiro a você no feminino apesar de todos, com exceção de mim e daquele mendigo da Colonia Roma, intuírem que você é um menino.

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Cinco minutos depois do ultrassom das nove semanas, a doutora fala sobre o exame que detecta o risco de síndrome de Down e outras alterações cromossômicas. O teste consiste em um ultrassom e um exame de sangue. No primeiro sai tudo bem, mas depois de alguns dias a doutora me liga para avisar que os resultados sanguíneos revelam que nossa bebê tem alto risco de ter uma cópia extra do cromossomo vinte e um. É necessário fazer um exame para um diagnóstico mais preciso.

Estou na casa de uma amiga no momento em que recebo a ligação, e apoio as mãos sobre o espelho desse banheiro alheio para abafar um grito. Estar esperando é o termo que melhor descreve a gravidez: a alegria se mescla com a expectativa constante dos filmes de fantasmas, quando o personagem principal tateia enquanto caminha por um corredor escuro esperando que uma assombração apareça do teto. O medo se transforma na única linguagem que sou capaz de falar.

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Durante séculos existiu, em algumas aldeias rurais da região de Jiangyong, na província chinesa de Hunan, uma linguagem feminina secreta. Chamava-se ñü shu e era compartilhada por mulheres de geração em geração por meio de lenços bordados, vasos e anotações ocultas nas dobraduras internas de leques de papel. Essa discreta caligrafia era a única maneira pela qual elas podiam se comunicar à margem do olhar masculino, com frequência impositivo e violento, para o qual aquela escrita não passava de desenhozinhos abstratos parecidos às pegadas deixadas pelos pássaros sobre a neve.

Como se transmite a língua materna? Eu desenho no meu ventre o corpo da minha filha com traços lentos, como se fizesse inscrições em uma tabuleta de barro cozido.
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No ultrassom de catorze semanas vemos uma mão acenando, com todas as falanges estendidas, e um braço dobrado na perpendicular, como alguém que descansa numa cadeira de praia. Minha filha não nasceu, mas está viva. Depois do cansaço do primeiro trimestre, volto a fazer tudo como fazia antes da gravidez, mas agora somos duas. Moro num episódio de A quinta dimensão: este ser de outro mundo toma violentamente posse de mim e me faz desaparecer. Como se meu ventre fosse um jogo de Tetris, as células se multiplicam e mudam meus órgãos de lugar.

Para crescer, minha filha consome os alimentos que cabem a mim. Nesse sentido, parece o tumor que habitou o pâncreas da minha mãe durante vários meses. Exploro esta última ideia em toda a sua perversidade: minha bebê habita o limite do que começa, e o adenocarcinoma, com suas células em forma de estrela – o câncer é um céu iluminado –, habita o limite do que acaba. A primeira recebemos com mamadeiras e macacões, o segundo tentamos aniquilar com quimioterapia. Mas em ambos os casos o vazio adquire novas formas.

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À pergunta “O que você deseja para seu filho?”, Negro Fontanarrosa respondeu: “Que os amigos fiquem felizes quando o virem chegar.”