[N.92 | 2023]

La Grieta [fragmento]

Catalina Infante

Chega um táxi em que subo impaciente, tem cheiro de pinho e no rádio toca um reguetón como música de fundo. Marín com Salvador, mas primeiro quero parar para comprar cigarros, Blanca – ainda chateada comigo – grita ao motorista, enquanto lhe pede para abaixar a música e abre a janela, com aquele gesto tão dela de enrugar o rosto com desprezo.

Depois de meses sem sair, deixo Antonia pela primeira vez com a mãe de Felipe, que insistiu – incansável, desde que nasceu – em dormir com ela alguma vez. Já sei que vocês brigaram, me disse ao entrar, mas pedi a ela que evitássemos o assunto. Ela, então, tirou um pacote, embrulhado em papel de presente reciclado do Natal, era uma sacola gigante da Peppa Pig, com uma lata de fórmula dentro. Ela insiste em provar que o meu leite não enche e que é por isso que Antonia acorda tanto durante a noite. Expliquei a ela, com a paciência que pude, que passei a semana toda tirando leite para juntar para hoje, que, por favor, não desse do outro. Escondi a lata atrás dos pratos – com certeza ela vai encontrar – e corri para o táxi para aproveitar as quatro horas que tenho antes que Antonia se dê conta de que eu não estou. 

Na Marin com Salvador, fica o apartamento do meu amigo Nico. Antigo, enorme, decorado, com tudo no lugar, como nas revistas. Blanca está sentada em uma poltrona art-déco, como se fosse uma pintura, e segura uma taça de vinho enquanto eu fumo erva – como dizia minha mãe – e cultivo uma corcunda desde 1986. Brindamos à minha rescisão de convívio, que é como chamam brincando a briga que eu tive com o Felipe; eu rio, enquanto choro. Logo chega uma garota jovem, Daniela, protagonista de um filme que Blanca promove em sua agência. Parte do trabalho de Blanca é carregar a garota como um chaveiro por todo lado. Não se preocupe, ela é bem legal, me diz Blanca ao ver a minha cara de incômodo. Não deve ter mais que 25 anos, tem o cabelo pintado de rosa, o rosto de uma boneca. Nos mostra o trailer do filme em seu celular, para que eu e Nico possamos nos inteirar de quem ela é, mas não fazemos ideia. Concordamos em bajulá-la e ela nega com a cabeça, fingindo humildade. 

Nico e eu fomos namorados na universidade, ele era meu assistente em Arte Contemporânea. Meus amigos o chamavam de Frida Kahlo, zombavam da mãe dele, uma artista que tinha feito uma pequena fortuna nos anos dois mil com plágios de artesanato mexicano que vendia por preços altíssimos entre os “redset”1. Ficamos juntos por alguns anos, nunca apaixonados, sempre amigos. Também saiu com Blanca quando os apresentei, mas não ficaram juntos porque, segundo ela, ele era ruim de cama. Ele agora diz que o sexo é supervalorizado e eu concordo, porque sou uma mãe celibatária, mas também porque não costumo discordar muito de ninguém neste momento da minha vida, me tira energia vital. Os chineses dizem que a energia vital é algo que herdamos dos nossos pais. Não sei do meu pai porque mal o vejo e não dá para perguntar sobre a energia vital dele. Mas minha mãe, quando me teve, já tinha pouca, então é provável que eu tenha herdado dela. Durante a gravidez, tentei fazer coisas chinesas para me ajudar, como tomar sopa de missô e fazer acupuntura, mas agora desisti desse esforço e voltei ao passivo, que é minha zona de conforto. A falta de energia vital afeta a falta de libido, eu quero dizer ao Nico, e que ele tome mais sopa de missô, mas ele não entenderia e eu não estou aqui para explicar as coisas para ninguém. Não consigo seguir o fio da conversa, só consigo parar na imagem de Blanca, Nico e eu sentados aqui, depois de anos de amizade, iguais, mas envelhecidos, e lembrar aquela velha vida jovem à qual não podemos mais voltar.

Nestes dias, Felipe entra e sai de casa, cuida da Antonia à tarde, depois do trabalho, e logo vai embora. Ele dorme na mãe dele ou sei lá onde, eu não pergunto, quase não falo com ele, nossas tentativas de conversar sempre acabam em gritos. Às vezes fico aliviada que ele não esteja. Não tenho neurônios nem ânimo para recuperar nada, nem para argumentar nada, e discutir com o Felipe é argumentar, como nos tribunais. Objeção, sem mais perguntas. Talvez essa distância seja, por enquanto, a mais adequada para os três. 

Vou ao lavabo na entrada do apartamento de Nico. Me olho, respiro, abro o espelho. Vejo lenços descartáveis, balinhas, camisinhas, parece um hotel, aquela neurose do Nico me enoja. Tem um perfume em miniatura, eu sinto o cheiro aspirando forte, para ver se desmaio, e o perfume entorna em mim. Abro a torneira da pia para lavar a blusa e fico encharcada. Pego o papel para secá-la e pequenas bolinhas ficam grudadas no tecido preto. Me detenho nelas. Não devia ter fumado. Lavo as mãos com um sabonete novo, que escorrega e cai no vaso. Pego um monte de papel para resgatá-lo, dá certo, mas acontece que o papel gruda no sabão, então desisto e jogo tudo no lixo. Estou esgotada. Faço xixi nesse banheiro minúsculo, a parede oposta está cheia de quadros de músicos me observando. Uma Britney Spears sem cabelo me desafia, me olhando diretamente nos olhos, brincando de ser meu reflexo. Me perco na cronologia da minha história com Felipe e vejo minha sombra de fora, como se observasse tudo o que faço de errado sem perceber; concluo exatamente por que o mandei embora. Logo esqueço, como quando um sonho se desvanece ao acordarmos. Seguro o celular com o maxilar cerrado ao sair do banheiro, a menina de cabelo rosa canta uma música no terraço, um vizinho grita cala a boca. Nico me pergunta se eu estou bem. 

— Quero ir embora, digo a ele. 

— Tá, seca essa blusa, vou pedir um táxi. Por favor, não escreva para o Felipe. 

— Já escrevi. 

— O que você disse? 

— Eu não posso fazer isso, não quero ser mãe.

Como um pedaço de bolo embrulhado em papel toalha que o Nico me dá para me trazer de volta a mim, e sinto nele um gosto metálico. Tento seguir a rota do carro que se move pelo mapa na tela, mas meus olhos se estreitam e eu cambaleio. Apago a mensagem que mandei para o Felipe e depois pesquiso no Google os efeitos que o meu leite com maconha pode causar na Antonia. Aparecem coisas horríveis. Então olho o Instagram da cabeça-cor-de-rosa, mas o rosto de boneca dela não aparece em nenhuma foto, são só fotos conceituais que eu não entendo. Quando chego a minha casa, saio do carro, sonolenta. Tento abrir a porta sem fazer barulho, mas a luz da rua está apagada e não acerto a fechadura. Subo as escadas devagar, tentando evitar o rangido da madeira. O trajeto me parece eterno, como se eu adormecesse a cada passo. No corredor, de pés descalços, passo em frente ao quarto de Antonia, o meu de criança, e ouço minha sogra roncar com ela. Não olho para dentro, sigo em frente, acelerando meu passo. Chego na nossa cama e lembro que é certo, que Felipe não chegou para dormir de novo.

Acordo como nunca às nove, e a casa está submersa em silêncio. Minha boca está pálida e seca, meu hálito sujo. Me levanto assustada e corro pela casa procurando Antonia. Encontro-a calma em sua cadeira enquanto minha sogra lava uma mamadeira. 

— Ela nem ligou! — minha sogra grita e Antonia chora ao me ver. Meus peitos estão cheios de leite, duros, fervendo, eu a amamento com alívio, me sinto indecente diante dos seus olhos e dessa mão pequena que me acaricia.

— Coloquei um pouquinho de recheio e ela apagou!

  1. Expressão chilena que designava, nos anos 1990, membros da elite cultural e intelectual, de esquerda, que haviam voltado ao Chile do exílio.4 ↩︎