[N.99 | 2024]

Labor

Catarina Barros

Sempre que penso no momento em que descobri que estava grávida, vejo-me em frente ao Centro Comercial de São Marcos, embora saiba que o laboratório era no Cacém, e que foi lá, na sala de espera, que abri o envelope. Mas talvez só tenha agarrado no telefone aí, à saída do supermercado, enquanto subia as escadas exteriores, vinda da paragem do 140. Tinha sido naquele centro comercial que, com quinze ou dezasseis anos, informara os meus amigos de que nunca teria filhos.

Em Fevereiro de 2005, entre o primeiro e o segundo semestre da licenciatura em Estudos Portugueses, que frequentava intermitentemente e nunca terminei, houve um conjunto de mudanças na minha vida: instalei-me na minha primeira morada na Bica, com o namorado de então e duas amigas; abandonei, de súbito, a formação que vinha suportando há duas semanas na TMN, e que me habilitaria a ser operadora de call center, linha inbound de apoio a clientes (posição rara num mercado onde abundavam as ofertas para outbound, com a sua miragem de prémios de produtividade decorrentes da venda de tarifários de rede fixa, se não fraudulentos, pelo menos sem vantagem alguma), e, nesse mesmo dia,
comecei a trabalhar na Body Shop, onde tinha ido só para me candidatar. A avaliar por aquilo que levava vestido, a gerente só podia estar desesperada. Foi também nesse mês que descobri que estava grávida, o que me fez perder tanto a casa na Bica como o emprego na Body Shop. Tinha vinte e um anos.

Depois de ter sido mãe, quatro anos antes de mim, Marie Darrieussecq dedicou-se ao livro que veio a chamar-se O Bebé, uma obra constituída por pequenos fragmentos acerca da maternidade e da relação dessa experiência com a subjectividade e a literatura. A maternidade parece constituir o momento propício à reflexão sobre a sua condição enquanto mulher, mãe e escritora e sobre a eventual incompatibilidade desses papéis. Narrando a imersão na vida do bebé, Darrieussecq vai também dando conta das tentativas de escapar à dissolução de si que a maternidade e, em particular, as instituições que a rodeiam parecem impôr. Convoca, por exemplo, Annie Ernaux (que fala sobre o suspense do sono infantil que domina temporariamente a vida de uma mãe), mas também
Montaigne (que escreve sobre o choro), Toni Morrison (que a faz pensar que não existe uma escrita feminina, mas apenas temas femininos), o Ulisses (em particular, a morte do filho de Bloom, Rudy, e o facto renovadamente escandaloso de as crianças serem mortais), Rousseau (que considera indigna a mulher que escreve em vez de se ocupar dos filhos) e Stephen King (o horror clássico ao regresso do filho morto).

Quando o meu filho nasceu, eu não sabia quem era Darrieussecq, Ernaux ou Morrison e não vi nesse evento oportunidade nenhuma.

Tinham sido as minhas colegas na loja, duas raparigas cujos rostos se apagaram, como os de tantos colegas de trabalho cujas vidas se cruzaram com a minha, a insinuar que aquela náusea constante não era, como eu supunha, nem um problema digestivo, nem uma somatização existencialista. Eu não era desinformada, mas era jovem e, como quase todos os jovens, sabia que havia coisas que não me podiam acontecer, como morrer, falhar ou engravidar. A gerente teve pena, mas não havia nada que ela pudesse fazer: eu ainda não tinha assinado contrato. Saí sem me zangar, conhecendo o suficiente do mundo, esse enorme shopping center, para não o temer.

Nessa época, a vida era para mim um contínuo empregada precisa-se. Fui rápida a elaborar um plano, a arranjar um esquema que me permitisse acolher o bebé, comprando-lhe tudo o que, três anos antes, no meu segundo emprego, tinha vendido na loja do Centro Comercial Roma — ovos, carrinhos, esterilizadores de biberão, mamilos de plástico, tetinas com três velocidades de sucção, extractores de leite, chupetas que não fazem mal aos dentes, chupetas que brilham no escuro, cadeiras da papa com tabuleiros amovíveis que se transformam em espreguiçadeira, aquecedores de biberão, para casa e para o carro, babetes com dizeres engraçados, esponjas naturais, aspiradores nasais —, e arranjei emprego na Vodafone, linha empresarial, de novo inbound. O meu novo posto de trabalho não ficava na cave (que já conhecia, de uma outra época, quando verificava processos administrativos) mas no quinto ou no sétimo andar, bem para cima, de onde se via o rio. As colegas mais antigas, contratadas antes do outsourcing e das empresas de trabalho temporário, olhavam-nos, às que vínhamos com contratos renováveis mensalmente, com justificada desconfiança. A nossa presença era a prova de que um dia — quando? — tudo aquilo que tinham lhes seria tirado. Eram as últimas a subir o elevador: dali por diante seria sempre a descer.

Ninguém no call center sabia que eu estava grávida. À hora de almoço, sentava-me com um caderno e uma caneta do lado de lá do Pavilhão de Portugal e esperava. Esperava que ninguém me encontrasse, que ninguém me fizesse perguntas, que não me distraíssem com começos de amizades que eu não tinha a mínima intenção de manter. Por vezes, dava uma volta no centro comercial, no corredor das lojas de artigos para crianças, mas nunca comprava nada. Quase tudo me foi oferecido por familiares, amigos de amigos, gente que já tinha passado pelo mesmo e decidido não repetir. Entristeciam-me, sobretudo, os homens de fato e gravata que, à saída da zona de restauração, naqueles minutos que sobram do almoço, desciam às lojas de puericultura, quase sempre acompanhados por um colega, para comprar um presente para o bebé. Muitos anos depois, sentada num banco no Jardim da Estrela enquanto o meu filho subia e descia à girafa, o que me entristecia era estar ali sozinha — era não haver um pai. Não para ele, mas para mim.

Na primeira página do meu caderno de 2005 registo as definições de iconoclasta, dilação, demiurgo e glossolalia. A treze de Fevereiro escrevo, pela primeira vez, sobre a gravidez e, em particular, sobre a insistência das pessoas que me rodeiam: toda a gente quer que eu tire, escrevo, dizem que não tenho condições e, a seguir, que respeitarão a minha decisão. Para decidir, faço uma lista. Identifico 4 razões para ter e 10 para tirar.

Em Junho temi ser descoberta e pedi à supervisora que se encontrasse comigo lá fora, num intervalo. Sabia o que ia dizer e disse-o sem necessidade de prolongar a pausa: que estava grávida, que estava a tentar juntar dinheiro, que o bebé estava previsto para o princípio de Outubro e que me comprometia a pedir a demissão antes de isso acontecer. Ela acreditou e eu cumpri — pedi a demissão em Setembro. Nessa altura, a Gisela ainda trabalhava ao meu lado. Tenho uma fotografia dela, headset na cabeça, entre tarifários, upgrades e fidelizações. Nunca mais a vi.

Os bons escritores fazem os maus diários. Aceito fazer um mau diário, declara Maria Gabriela Llansol. Nunca comecei um caderno sem sentir que o estragava. Se alguma vez desejei que aquilo que escrevo fosse literatura, a verdade é que quase sempre se tornou correspondência. Escrevo para a pessoa que um dia serei, dirijo-me a essa promessa, a essa versão despojada dos bugs do presente. Os dias da escrita foram sempre dias de não consigo, dias em que fui qualquer coisa a mais em relação ao texto, qualquer coisa que estorva.

O trabalho não era um suplício em si mesmo, era por estar no lugar de, impedindo qualquer coisa de vir, escreve Llansol num dos seus diários. Quatro meses depois de o bebé nascer, arranjei emprego numa empresa de introdução de dados. O escritório ficava na zona industrial de Queluz, a viagem de carro não demorava mais do que dez minutos.
O infantário, em São Marcos, recebia os bebés a partir das sete, e o meu, que ia tão cedo, não era o primeiro a chegar. Todos os dias, ao longo de oito horas, copiava para o computador dados pessoais preenchidos em cupões: nome, morada, número de contribuinte, data de nascimento, telefone, e-mail. Cada cupão faria chegar por correio um pacote com amostras de fraldas, pequenas embalagens de leite em pó e toalhitas. Quantas mulheres poderiam estar grávidas ao mesmo tempo? Ao fim de várias semanas, soterrada numa pilha de cupões que nunca diminuía, compreendi, por fim, que o mundo é uma espécie de fábrica — uma fábrica onde as operárias são as mulheres que, voluntária ou involuntariamente, nunca interrompem o labor.

É através da mãe que o bebé vem ao mundo. É no corpo da mãe que o corpo dele se engendra e é do corpo da mãe que se alimenta, antes e depois do nascimento. Desde o minuto em que ele nasceu, vivo na loucura, diz Duras. Mesmo que a loucura seja desejada, há qualquer coisa de inesperado no modo como a vida se configura quando uma mulher dá por si vertida noutro ser humano, quando deixa de estar contida no seu próprio corpo, entretanto desfigurado, rasgado, atravessado. Também Rachel Cusk descreve a ameaça dessa fusão, com a qual se debate e que recusa aceitar: descubro que existe agora uma pessoa que é eu, mas que não está circunscrita ao meu corpo. Parece ser uma espécie de colónia. Ao ter um bebé, criei uma consciência rival.

A cada mudança de casa, cada separação, cada agora é que vai ser, meço-me de novo com os meus cadernos, resistindo à tentação ora de os ler, ora de os destruir. Estão ali todos os nomes. Cada entrada é de uma fidelidade pristina, quase rupestre. Em cada um, a mesma vontade, a mesma impotência. O meu desejo de escrita é vigiado pela certeza da impossibilidade da escrita. Ao longo dos anos, a mesma razão: o acaso de eu ser eu. A imagem de um leitor que me quer mal, um leitor que deseja que eu falhe, que usa a caneta, não para sublinhar as minhas melhores frases, mas para destacar cada um dos meus erros, assombra-me a todo o momento. Para esse leitor, tudo o que eu escrevo é suspeito e risível — ele tem de me destruir.

Quando o meu filho tinha dois anos, Bruce Robinson fazia parte da equipa do Monterey Bay Aquarium Research, que tinha por função mergulhar com máquinas fotográficas em busca de imagens subaquáticas. Numa dessas sessões, num sítio tão profundo que não entra qualquer luz, o robô que usavam para captar imagens detectou um polvo a mover-se por detrás de uma pedra. Dois meses depois, ao passar de novo por ali, constataram que o polvo ainda lá estava, desta vez sentado sobre cento e sessenta ovos. Dado que nunca se tinha observado um polvo àquela profundidade, os cientistas não sabiam quanto tempo levaria até ao nascimento dos bebés. Deram-lhe um nome, Octomom, e começaram a visitá-la regularmente. Vários meses depois, a Octomom continuava no mesmo sítio, vigilante, parada. Não podia, em momento algum, levantar-se. Novembro, Dezembro, Janeiro — passaram-se seis meses e ela sempre no mesmo lugar, um pouco mais pálida e magra, já com sinais de cataratas. Para os polvos fêmeas, descubro, a reprodução significa a morte: a mãe é fecundada, senta-se e espera — pelos filhos, pelo fim. Durante os quatro anos e meio que este processo dura, a Octomom entrega-se completamente à tarefa de precisar de menos, de ser menos, de existir menos, até que eles nascem e ela pode, finalmente, morrer.

Chamaram-me da Enzifarma depois de uma entrevista infeliz na Genzyme, onde acharam o meu currículo instável. Foi a última vez que disse todos os empregos que tive. Ofendida com a oferta, não quis aceitar — preferia introduzir cupões até ao fim dos meus dias —, mas a funcionária da empresa de recursos humanos, sem nunca aludir ao facto de eu ser uma mãe solteira de vinte e dois anos sem formação superior, convenceu-me a ir à entrevista. A empresa ficava no Tagus Park e a directora do Departamento Técnico, que tinha sido mãe dois ou três meses antes de mim, achou, num momento de contraintuição corporativa, que eu seria uma boa aquisição para a equipa. A mudança de emprego veio em boa hora, dado que os problemas de saúde do meu filho tinham acabado por levar a que a empresa de introdução de dados, onde o meu contrato era temporário, me ameaçasse de despedimento. Pus o bebé numa ama de má reputação e aceitei a oferta da farmacêutica. Vita nuova.

Os empregos seguem-se uns aos outros, à velocidade da minha indignação, ao ritmo da minha capacidade de inventar novas oportunidades, afinal sempre velhas e impossíveis. Não há nada que eu não saiba fazer e, ao mesmo tempo, nada em que me possa deter. Vendo livros, dobro camisolas, marco bainhas, tiro cafés, escrevo textos sobre vinhos que nunca bebi, sobre lojas onde nunca entrei, sobre famílias a que nunca pertenci, atendo telefones, procuro bombas em aeronaves, aspiro, secretario, recomendo máquinas fotográficas, registo canetas e dossiês, mudo fraldas, catalogo, animo, vigio, cultivo, organizo, remodelo, emprato, alojo.

Queixo-me, no caderno de 2008, de não ter tempo para escrever “para mim”. Escrevo: lemos tanto e, mesmo assim, nunca estamos preparados para a vida. Tiro alguns apontamentos sobre a lição do Barthes — o que quero dizer e o que quero ser não encaixam no real.

Um dia, um homem tentou ridicularizar-me chamando os meus textos de caderninhos adolescentes. Percebi de imediato onde ele queria chegar. Sabia, como ele, que a literatura, como a arte e a ciência, é onde ninguém está — e que eu estou, como um bibelô no naperom da página, em cada linha que escrevo. Eu sou o problema da minha escrita, e a minha escrita, enquanto problema, sou eu.

Quando escrevo, o meu corpo é vulnerável ao toque, ao som, à paisagem. Mudei várias vezes o escritório de lugar, na tentativa de encontrar um sítio que me protegesse da matéria da casa, dos seus corpos, da sua desarrumação, das suas necessidades. É-me impossível, por exemplo, escrever com a porta do quarto aberta. Do escuro do hall chega uma espécie de clamor. Amarro-me à mesa de trabalho, tapo os ouvidos com white noise, pink noise, brown noise, tento não me deixar levar pelo canto da casa, resisto ao desejo de mergulhar nos afazeres do dia. Chego ao parágrafo como o náufrago a uma ilha — grafo a ilha, letra a letra, suas palmeiras e escorpiões. O elemento mais importante desse quarto não é a disposição da mesa, o acesso aos livros nem o desenho da cadeira, mas a porta. Ainda não encontrei nenhuma que me colocasse à distância certa e me protegesse do que, lá fora, aguarda o toque da minha mão.

Agora é só eu, eu, eu, disse ele, ele, ele.

Nos anos noventa, no sítio onde eu cresci, era costume as meninas receberem de presente uns caderninhos com um cadeado: o diário. Só as raparigas eram incentivadas a encher páginas coloridas e perfumadas com a letra gorda da infância, só elas pareciam ter gosto em registar a pequena história das suas vidas: uma discussão com a Ana Rute; fatias douradas ao lanche; carrinhos de choque de novo na Póvoa; o facto alucinante de ter sido escolhida pelo Luís, em detrimento da Sílvia, e de agora já nem ter a certeza se gosto dele. Tenho-me perguntado sobre as consequências desta prática na minha vida — e da falta dela, na dos homens com quem me cruzo.

Escrever a vida é, de algum modo, viver de novo, mas de uma forma deslocada e definitiva. Ao descobrir que a adolescência não traria as aventuras que imagináramos, eu e a minha melhor amiga demos início a uma troca epistolar na qual narrávamos eventos que nunca tínhamos protagonizado, pensamentos que nunca tínhamos pensado, emoções que nunca tínhamos sentido. De manhã, cada uma entregava uma carta à outra e, nessa carta, estava a nossa segunda vida, na qual também passávamos o dia juntas, mas noutro cenário, cercadas por outras personagens, a desempenhar outros papéis. Éramos, uma para a outra, o diário, mas um diário cheio de mentiras, o diário das possibilidades que não tínhamos, das passagens que não nos eram dadas.

Tudo me perturba nos preparativos das mulheres que sonham reaparecer como as mais altas coisas que os filhos criam. A gravidez, não como acidente, acaso ou surpresa, mas enquanto projecto e destino, nunca deixa de me surpreender. De certo modo, é como se tudo quanto fiz nos últimos anos tivesse sido o esforço para não me tornar isso que já era, para que a minha vida não fosse uma reiteração. Talvez seja por isso, também, que me sinto muito mais mãe quando os amigos do meu filho se sentam à nossa mesa. A presença deles — filhos inegáveis de outras mães — reifica-me na categoria a que pertenço, põe-me no lugar. O meu filho queixa-se — diz que parece que estou a fingir. O que ele não percebe é que, perante os filhos das outras mães, sou obrigada a representar um papel, esse papel que me pertence por natureza, mas que eu não sei interpretar.

A presunção de verdade associada ao diário faz dele um documento forense, útil para descobrir quem matou Laura Palmer, como pensava a jovem Sontag, ou quais os planos de Etty em 1941. Contudo, porque tenta fixar aquilo que não pode ser fixado, o diário depressa se torna obsoleto. O destino natural do caderninho adolescente não é a posteridade, mas o esquecimento. Se for nostálgica, esperançosa, apegada — e tiver algum espaço em casa —, a autora mantê-lo-á três estantes acima do presente, na gaveta mais robusta. O diário pode também ser perigoso. Foi por ter lido o meu que a minha mãe me expulsou de casa, uns meses antes do meu décimo oitavo aniversário.

O que mais me surpreendeu em Garments Against Women, de Anne Boyer, foi a descoberta de que, não apenas a escrita, mas também a não escrita, é uma prática colaborativa, uma produção conjunta, partilhada, dividida. Kierkegaard diz que a recordação é como uma peça de roupa que deixou de nos servir, ao contrário da repetição, que, por ter bom corte, podemos continuar a usar. Eu não tenho a certeza de que as minhas repetições, as minhas formas, sejam coisas que me servem. Uso-as contra mim.

Razões morais fazem do biógrafo uma espécie de paparazzo e do autobiógrafo um exibicionista despudorado que dá à estampa o traumático, o vergonhoso, o indefensável e o escandaloso. A má reputação da biografia precede-a, sendo comparada a uma forma de perseguição, um trabalho de detective, um julgamento, aos bastidores de um teatro, a um obituário, uma simples coscuvilhice ou um exercício de psicanálise, uma assombração, um assalto, um embalsamamento, uma escavação, traição, vingança, autópsia, profanação ou, em última análise, uma obra de ficção. Mas há, por detrás da rejeição da biografia, segundo Hermione Lee, valores estéticos: a ideia de que a arte é um reino à parte, puro, amoral; em suma, uma entidade inviolável, distinta da vida, e que não deve ser degradada pela interpretação biográfica.

Perante tudo o que não sei sobre mim, perante a incoerência e a dificuldade de me reconhecer e estabelecer no texto, só me resta fracassar. Só o fracasso, no contexto do tempo discursivo, é não violento. A escrita é uma coisa hostil na medida em que estás a tentar fazer com que outra pessoa veja as coisas como tu as vês, estás a tentar impor a tua ideia, a tua imagem. É hostil tentares mexer assim com a cabeça de outra pessoa, dizia Joan Didion. Se não é possível saber quem verdadeiramente sou, também não é possível escrevê-lo — daí a demora.

Não consigo decidir se o diário é um incitamento à confissão ou, pelo contrário, ao silêncio. Será o diário uma espécie de tecnologia do si para crianças, uma máquina de fazer sujeitos? E, se sim, que tipo de eu pode um diário produzir? Escrever no diário reitera ou depura? Pode a escrita redimir o dia, ou mesmo a vida? O diário é um coador, um funil, uma peneira? Torno minha a pergunta de Elena Ferrante: daquilo que escrevo
para mim, quanto é que pode oferecer-se ao olhar de outrem?

Um dia, numa festa em casa de uma amiga, ouvi a história da minha vida, contada por uma pessoa que não me conhecia. Era uma história em que eu nem sequer entrava.

Zadie Smith escreve algures que os ensaios sobre a experiência afectiva de uma pessoa não têm pernas para andar, que a única coisa que têm é a sua liberdade. Mesmo que não escrevam, as mulheres que conheço estão sempre em contacto com a autobiografia, que narram e escutam, que ajudam a construir e a codificar, que interpretam e traduzem. A única coisa que têm é a sua liberdade.

Quando uma pessoa engravida aos vinte e um ninguém lhe dá os parabéns. A gravidez antes do tempo — a gravidez que inviabiliza o “futuro” — é vista como uma falha moral e vivida como uma vergonha. Engravidar à saída da adolescência é percepcionado como um modo radical de autodestruição que inspira pena e rancor. O único consolo para a grávida precoce (vamos chamar-lhe assim) vem da octogenária que a assegura de que, noutro tempo, aquela teria sido a idade certa. Não que a idade seja a maior preocupação de uma grávida sem meios de subsistência, sem rede familiar segura e sem emprego estável, num país que não lhe dará direitos nem lhe concederá privilégios.

Mas quem é que a mandou engravidar? será a banda sonora da próxima década.

Se há poucas fotografias do meu corpo prenhe, um corpo que é toda a história das mulheres, as do bebé são tantas que tenho de pagar uma conta na nuvem para as guardar. O corpo do bebé, um corpo que cresce, que se vai deformando e recompondo, é a minha vingança sobre esse corpo inseminado para o qual ninguém quer olhar — nem mesmo eu. Na minha experiência, gravidez e bebé são elementos que não se misturam.

Há uma demora nestas linhas — uma lentidão que vem do desejo de dizer a verdade. Quero ser justa — e querer ser justa atrasa-me. Quero ser compreendida — e querer ser compreendida mantém-me em silêncio. Escrever é como estar outra vez grávida. O texto não é o bebé, mas a barriga.