Esta é uma história que ficou marcada na minha memória, e já contei parte dela antes.
Ele se chamava Mark. Era alto, negro e musculoso. Se a beleza fosse um cavalo, ele teria lugar garantido na Real Polícia Montada Canadense. Ele queria tornar-se lutador de boxe, e sua inspiração era Joe Louis. Saiu do Texas, onde nasceu, e conseguiu emprego em Detroit. Lá, pretendia ganhar o suficiente para encontrar um treinador que o ajudasse a se transformar em um boxeador profissional.
Uma das máquinas da fábrica automotiva cortou fora três dedos da sua mão direita e seu sonho morreu quando eles foram decepados. Eu o conheci em São Francisco, para onde ele havia se mudado, e ele me contou essa história para explicar por que era conhecido como Mark Dois Dedos. Não demonstrou nenhum rancor em relação à morte de seus sonhos. Falava baixo e muitas vezes pagava uma babá para que eu pudesse visitá-lo em seu quarto alugado. Era um pretendente ideal, um amante sem pressa. Eu me sentia absolutamente tranquila e segura.
Depois de alguns meses de suas ternas atenções, uma noite ele foi me buscar no meu trabalho e disse que me levaria para a baía Half Moon.
Estacionou num penhasco e, pelas janelas, vi o luar prateado ondulando sobre as águas.
Saí do carro e, quando ele disse, “Vem cá”, obedeci imediatamente.
Ele disse: “Você tem outro homem, e anda mentindo para mim.” Comecei a rir. Ainda estava rindo quando ele me bateu. Antes que eu conseguisse respirar, ele socou meu rosto com os dois punhos fechados. Vi estrelas antes de cair.
Quando voltei a mim, ele havia retirado a maior parte das minhas roupas e me apoiara sobre umas pedras. Segurava um sarrafo de madeira e estava chorando.
“Eu te tratei tão bem, sua vaca nojenta, traidora, dissimulada.” Tentei andar até ele, mas minhas pernas não sustentavam o meu corpo. Ele me virou de costas. Então, deu uma pancada com o sarrafo na parte de trás da minha cabeça. Desmaiei e, quando voltei a mim, vi que ele continuava a chorar. Ele continuou me espancando e eu continuei desmaiando.
Preciso recorrer ao que me disseram para narrar os eventos das horas seguintes.
Mark me deitou no banco de trás do seu carro e dirigiu até a região dos afro-americanos de São Francisco. Estacionou diante do Betty Lou’s Chicken Shack, chamou algumas das pessoas que estavam por ali e me mostrou a elas.
“É isso o que se faz com uma mentirosa traidora.”
Elas me reconheceram e voltaram para o restaurante. Contaram a Miss Betty Lou que a filha de Vivian estava no banco traseiro do carro de Mark e parecia morta.
Miss Betty Lou e minha mãe eram amigas próximas. Miss Betty Lou telefonou para minha mãe.
Ninguém sabia onde ele morava ou trabalhava, nem mesmo qual era seu sobrenome.
Mas, por causa de todos os salões de bilhar e casas de jogo que minha mãe possuía, e dos contatos na polícia que Betty Lou tinha, esperavam encontrar Mark rapidamente.
Minha mãe era muito amiga do agente de fianças mais conhecido de São Francisco. Então telefonou para ele. Boyd Puccinelli não tinha em seus arquivos nenhum Mark ou Mark Dois Dedos.
Prometeu a Vivian que continuaria com as buscas.
Quando acordei, estava numa cama e com dores por toda parte. Respirar doía, tentar falar também. Mark disse que era porque minhas costelas estavam quebradas. Meus lábios tinham sido perfurados pelos meus dentes.
Ele começou a chorar, dizendo que me amava. Sacou uma navalha de lâmina dupla e a levou até a sua garganta.
“Eu não mereço viver. É melhor eu me matar.”
Eu não tinha voz para desencorajá-lo. Rapidamente, ele colocou a lâmina em minha garganta.
“Não posso te deixar pra outro negro.” Falar era impossível e respirar era doloroso.
De repente, ele mudou de ideia.
“Há três dias você não come nada. Preciso lhe dar um pouco de suco. Você gosta de suco de abacaxi ou de laranja? Só precisa balançar a cabeça.”
Eu não sabia o que fazer. O que o faria ir embora?
“Vou dar um pulo na venda da esquina para comprar suco para você. Desculpe por ter te machucado. Quando eu voltar, vou cuidar de você até se recuperar, se recuperar totalmente, prometo.”
Eu o olhei sair.
Só então reconheci que aquele era o seu quarto, onde eu tantas vezes tinha estado. Eu sabia que a proprietária morava no mesmo andar e pensei que, se pudesse chamar sua atenção, ela me ajudaria. Inspirei o máximo de ar que pude e tentei gritar, mas nenhum som saía. A dor de tentar me sentar foi tão extrema que só tentei uma única vez.
Eu sabia onde ele tinha deixado a navalha. Se conseguisse apanhá-la, pelo menos poderia tirar minha própria vida e não lhe daria o gosto de se gabar de ter me matado.
Comecei a rezar.
Enquanto rezava, eu perdia e recuperava a consciência, e então ouvi gritos no corredor. Ouvi a voz de minha mãe.
“Arrombem isso. Arrombem essa porra. Minha filha está aí dentro.” A madeira gemeu, depois rachou, e a porta cedeu. Minha mãezinha entrou pela abertura. Ela me viu e desmaiou. Mais tarde, ela me contou que foi a única vez em sua vida que isso aconteceu.
A visão do meu rosto inchado com o dobro do seu tamanho e dos meus dentes enfiados em meus lábios era mais do que ela podia suportar. Por isso ela perdeu a consciência. Três homenzarrões entraram atrás dela no quarto. Dois deles a seguraram e ela voltou a si, grogue, em seus braços. Eles a levaram até a minha cama.
“Meu amor, meu amor, eu sinto tanto.” A cada vez que ela me tocava, eu estremecia de dor. “Chamem uma ambulância. Vou matar esse filho da puta. Me desculpe, meu amor.”
Ela estava se sentindo culpada como todas as mães se sentem quando coisas terríveis acontecem com seus filhos.
Eu não conseguia falar, nem mesmo tocá-la, mas nunca a amei tanto quanto naquele momento, naquele quarto sufocante e fétido.
Ela acariciou meu rosto e afagou meu braço.
“Meu amor, as orações de alguém foram atendidas. Ninguém sabia como encontrar Mark, nem mesmo Boyd Puccinelli. Mas Mark foi comprar suco numa vendinha e dois guris roubaram de uma banca de vendedor de tabaco.”
Ela continuou a contar sua história.
“Assim que o carro da polícia virou a esquina, os guris atiraram os pacotes de cigarro dentro do carro de Mark. Quando ele tentou entrar no carro, foi preso. Os policiais não acreditaram em seus gritos de inocência e o levaram para a cadeia. Ele usou o único telefonema a que tinha direito para ligar para Boyd Puccinelli. Boyd atendeu o telefone.”
Mark disse: “Meu nome é Mark Jones. Eu moro na Oak Street. Não tenho nenhuma grana aqui comigo agora, mas a proprietária do quarto que alugo guarda uma boa parte do meu dinheiro. É só ligar para ela, e ela traz seja lá quanto você cobrar.”
Boyd quis saber: “Como te chamam nas ruas?”
Mark respondeu: “Todo mundo me conhece como Mark Dois Dedos.”
Boyd desligou o telefone, ligou para minha mãe e deu o endereço de Mark. Ele quis saber se ela iria chamar a polícia. Ela disse: “Não, vou ligar pro meu salão de bilhar e chamar uns caras da pesada, depois vou resgatar minha filha.”
Ela disse que, quando chegou à casa de Mark, a proprietária disse que não conhecia nenhum Mark e, de todo modo, o cara não aparecia ali havia muito dias.
Mamãe disse que podia ser, mas ela estava procurando sua filha e ela estava naquela casa, no quarto de Mark. Mamãe perguntou qual era o quarto dele. A proprietária disse que a porta ficava sempre trancada. Minha mãe disse: “Hoje ela vai abrir.” A proprietária ameaçou chamar a polícia e minha mãe falou: “Pode chamar o cozinheiro, pode chamar o padeiro, pode chamar inclusive o agente funerário.”
Quando a mulher apontou o quarto de Mark, minha mãe disse a seus ajudantes: “Arrombem isso. Arrombem essa porra.”
No quarto de hospital, pensei nos dois jovens criminosos que haviam atirado pacotes de cigarro roubados no carro de um estranho.
Pensei em como, quando ele foi preso, ligou para Boyd Puccinelli, que ligou para a minha mãe, que reuniu três dos homens mais perigosos de seu salão de bilhar. Em como eles arrombaram a porta do quarto no qual eu estava presa. Minha vida foi salva. Teria sido um incidente, uma coincidência, um acidente ou uma prece atendida?
Eu acredito que a minha prece foi atendida.
Eu me recuperei na casa da minha mãe. Seu amigo Trumpet estava trabalhando no Sutter Street Bar. Mamãe disse: “Trumpet acabou de me ligar. Ele sabe que estou atrás do Mark, e Mark está bebendo lá. Tome, uma arma.” Ela me ofereceu seu .38 Special e eu aceitei.
“Vá para o C. Kinds Hotel, que fica em frente ao Sutter’s, do outro lado da rua. Telefone para Mark do saguão. Trumpet disse que consegue segurá-lo ali por no mínimo uma hora. Ligue para ele e fale com um sotaque sulino. Diga que o conheceu algumas noites atrás, que está no C. Kinds Hotel e que quer vê-lo novamente. Quando ele sair do bar, você sai do saguão do hotel. Vá até a esquina e atire nele. Mate o sacana. Prometo que você não pega nem um dia. Ele tentou te matar. Atire nele.”
Telefonei do saguão do hotel. Mark não reconheceu a minha voz. Flertou, perguntando: “Como é o seu nome?”
“Bernice. Estou no saguão. Vem pra cá.”
Ele riu e disse: “É pra já.”
Em questão de segundos, ele estava na esquina e começava a atravessar a rua.
Saí do saguão segurando a arma. Eu o vi antes de ele me ver. Tive tempo suficiente para atirar, mas não quis fazer isso. Ele já estava no meio da rua quando me viu com a pistola na mão.
“Maya, por favor, não me mate. Deus meu, por favor. Desculpe. Eu te amo.”
Eu não senti pena dele. Senti nojo. Falei: “Volte para o bar, Mark. E vá para o banheiro. Pode ir. Eu não vou atirar em você.”
Ele virou as costas e saiu correndo.
Minha mãe balançou a cabeça. “Isso, você não puxou a mim. Puxou à sua Vó Henderson. Eu teria atirado nele como em um cachorro na rua. Você é boa, meu amor. É uma mulher melhor do que eu.”
Ela me abraçou. “Não precisa nunca mais se preocupar com ele. Espalhei a notícia. Ele sabe que, se aparecer em alguma rua de São Francisco, é meu, e que eu não vou hesitar nem por um segundo.”
Meus dois empregos mal pagavam as minhas contas. Eu começava num restaurantezinho como fritadeira às cinco da manhã e trabalhava ali até as onze. O segundo turno, num restaurante creole, ia das quatro da tarde às nove da noite.
Nas horas entre o emprego da manhã e o da tarde, eu pegava Guy na escola e o levava ao alergista, onde recebia uma lista de alimentos aos quais ele não era alérgico. Guy era alérgico a tomate, pão, leite, milho e verduras. Depois de sairmos do alergista, íamos para a loja de discos Melrose Record. Ele rumava para a seção de infantis, e eu, para a de blues e bebop. Cada um escolhia um cubículo e ouvia as músicas que tinha separado.
Depois de mais ou menos uma hora, fazíamos a nossa seleção. Eu pagava pelos discos e depois voltávamos para casa. Eu tinha tempo apenas de garantir que ele estivesse são e salvo em casa antes de bater ponto no meu emprego da noite, na cozinha do restaurante creole.
Certa manhã, no consultório do alergista, folheei uma revista feminina sofisticada e comecei a ler um artigo intitulado “Seu filho é mesmo alérgico ou não está recebendo atenção suficiente?”.
Guy terminou a consulta antes de eu terminar a leitura. Perguntei à recepcionista se eu poderia levar a revista emprestada e prometi devolvê-la na consulta seguinte. Quando ela concordou, guardei a revista na bolsa e não a olhei mais até terminar o turno da noite. Voltei para casa, sentei à mesa da cozinha e retomei o artigo de onde tinha parado.
O texto me enfureceu. Eu estava prestes a atirar a revista no lixo quando minha mãe ligou. Atendi abruptamente.
Ela perguntou: “Qual é o problema?”
Respondi: “Não aguento mais as mulheres brancas!”
Minha mãe quis saber: “O que elas aprontaram com você dessa vez?”
“Não é só comigo. Elas acham que sabem de tudo, só isso.”
Minha mãe disse: “Estou indo até aí. Ponha gelo num copo, por favor. Vou levar o uísque.”
Lavei o rosto, escovei o cabelo e enchi um copo com gelo antes de ela tocar a campainha.
Quando ela entrou em casa, eu me preparei para ouvir, “Sente. Tenho uma coisa a dizer.”
Em vez disso, ela pediu para ver o artigo que eu estava lendo. Eu lhe entreguei a revista e me servi de uma taça de vinho. Quando ela terminou de ler, sorriu e perguntou: “O que te fez ficar com tanta raiva?”
Falei: “As brancas, que foram brancas a vida inteira e são mais ou menos ricas, que têm alguém que pague todas as suas contas, acham que todo mundo é como elas. Eu preciso trabalhar em dois empregos e mal consigo fechar as contas e estou fazendo o melhor que posso.”
Minha mãe disse: “Sente, tenho uma coisa a dizer.”
Eu já estava esperando por isso e sentei.
“Eu sei que você é orgulhosa demais para pegar dinheiro emprestado e que jamais pediria por nada, mas a verdade é a seguinte: você tem um filho que não está bem e uma mãe que te ama. Eu não quero te emprestar dinheiro, quero investir mil dólares no seu futuro. Isso não é um empréstimo nem um presente. É um investimento.
“Daqui a três meses espero que você comece a me pagar. Espero que consiga passar mais tempo com seu filho. Você precisa encontrar um emprego que pague bem, porque eu vou querer cinco por cento de juros sobre o meu dinheiro. Sei que você é justa e sabe que sou dura na queda. Vamos esquecer as brancas e simplesmente pensar na gente.”
Agradeci a oferta e, na manhã seguinte, quando pedi demissão no meu emprego de fritadeira, o dono do segundo restaurante também me demitiu.
De repente me vi com uma enorme quantidade de dinheiro investida em mim pela minha mãe e desempregada. Levei Guy para a escola como quem faz um passeio, em vez de deixá-lo apressada como sempre fazia todas as manhãs. A felicidade dele era contagiante. Eu me peguei rindo.
Ele saltava, dançava e segurava minha mão, depois saía correndo de novo até a esquina e voltava. Sua alegria quase me fez chorar.
Quando eu o apanhei na hora do almoço, ele insistiu em que eu não pisasse nas rachaduras da calçada. Eu precisava, na verdade, saltar quando ele saltava. E eu fiz isso. Ele começou a rir de alegria ao me ver pular. Seu riso me alegrava e comecei a saltar mais e mais.
Em duas semanas, as alergias, que antes o faziam se coçar tanto que sua pele chegava a sangrar, começaram a melhorar. Em quatro semanas, as feridas cicatrizaram.
A boa sorte sorria para mim. Decidi lhe dar uma ajuda.
Eu me candidatei a uma vaga na loja Melrose Record e fui contratada. O novo emprego pagava um salário maravilhoso.
Minha mãe me disse que seus amigos lhe contaram que me viram pulando na rua com meu filho e brincando como se eu fosse uma criança. Ela disse a eles: “Não, ela não estava brincando. Estava apenas sendo uma boa mãe.”