[N. 118 | 2024]

Mar azul – carta para Juno

Ana Carvalho

Mata Norte, setembro de 2022

Deu no rádio que o sol nasceu hoje às 5h25 e que irá se por às 17h19. O repórter anunciou, ainda, a tábua de maré — a BAIXA-MAR, a PREIA-MAR. As alterações de pressão têm uma grande influência na atividade dos peixes. Eles se agitam nas pressões mais altas, e isso é um bom sinal para a pesca.

Imagine você, que, antes da invenção do barômetro, os pescadores adivinhavam os peixes pelo brilho resplandecente na superfície das águas. A dança cósmica do planeta, que altera correntes, movimentos de fundo marinho, a predição dos ventos e o fluxo das ondas.

No dia em que você viu o mar pela primeira vez, seu rosto era todo espanto. Os bracinhos firmando o corpo e o rosto enfiado na areia molhada. Quantas vezes ainda você não se deitou na areia e deixou que a água cobrisse seu corpo de menino?

Você, peixe resplandecente na superfície da água.

Faz duas semanas que você se mudou, e eu busco palavras, desenhos, símbolos, desvendo sonhos — só para desfazer minha saudade.

Tenho tido pesadelos, desses que não contamos a ninguém.

Olho as flores de cosmos amarelos pela janela do quarto. Como são bonitinhas amarelas assim! Atrás da jaqueira, um céu de agosto.

Faz frio.

As mudinhas que fiz de manjericão, hortelã e alecrim seguem crescendo. Vou plantá-las no vaso de cimento que comprei esses dias, as formigas estão atacadas com a promessa de uma chuva que não vem nunca.

Faço dois ou três exercícios de criatividade. Li no reviews que funcionam. Descobri neles alguns elementos transformadores da vontade.

Seu irmão perdeu mais um dente, e agora assovia quando fala. Anda com o hipopótamo de pano debaixo do braço e toda noite preciso cumprir com ele o ritual dos “bons sonhos, boa noite, dorme bem e até amanhã”. Ele me diz que a vida é mais triste longe de você. Então lhe faço um carinho, e ele adormece sereno.

Pedi à sua avó que me contasse histórias de família. Ela me manda fotografias, textos, histórias de pessoas que existem e outras que não existem mais. Invento com elas narrativas imaginadas, algum animal fantástico, um rosto que nunca amei. O tronco de um pequizeiro que ensaiei desenhar e que virou rio — essas águas que me atravessam os sonhos que se repetem.

Eu no quintal de cacos vermelhos da casa de minha avó. Eu, criança, sentada em sua perna manca de pólio, pedindo que ela toque uma música no piano. Ela volta o rosto na minha direção, fingindo-se brava. Diz que não pode tocar comigo sentada em sua perna manca. E sorri. Sorrio de volta. Como está gostoso ali: ela sentada na mureta branca que separa o quintal do galpão do fundo da casa. Eu sentada em sua perna, como num cavalinho. E, então, umas águas muito claras a inundar aos poucos o quintal — a cobrir plantas, pássaros, nossos corpos submersos. Não sinto medo. Gosto da sensação do peso e da transparência da água. Sua densidade azul.

Nadar no interior do tronco do pequizeiro que era minha avó.

Ser tronco, seiva e rio.

Descer o curso de um rio no interior do tronco do pequizeiro que era minha avó. Chegar à foz.

Ser peixe, raia, água-viva.

Meu querido, quando os sonhos falarem, acredite neles.

Te penso azuis. O quanto baste de azul.