[N. 86 | 2023]

Marés

Virna Lins

Falar sobre maternidade é como atravessar as dunas de areia sobre pernas de pau. É preciso encontrar um equilíbrio entre as ideias e compreender sensações até então desconhecidas; permitir ser invadida por uma enxurrada de lembranças e reconhecer tantos sentimentos “à flor da pele” – que transbordam diariamente. Organizar isso em palavras não é simples – faz o outro me ver.

No início, é estado de alerta. Tudo é novo, intenso e solitário. Impossível não sucumbir, de uma maneira ou de outra.

Comigo veio em forma de descarga emocional, literalmente, por uma semana: uma diarreia aguda desintegrou meu corpo. Eu não entendia o que era aquilo saindo de mim. Um dia passou. A partir daí, fui apresentada ao famoso “vai passar”, esse mantra que, mesmo não fazendo efeito algum em plena passagem do furacão, tem sua verdade. Uma pena não alcançarmos seu sentido de imediato. É preciso ver as coisas passarem, realmente, para acreditar que isso acontece.

Ainda no primeiro mês, lembro-me de constatar que não seria capaz de me lançar nessa aventura novamente. De jeito nenhum teria mais filhos, pensava, ao contrário do que havia imaginado a vida inteira. Eu estava apavorada e ainda confusa. Não entendia o porquê daquele sentimento meio torto, justo comigo, que sempre quisera ser mãe e amava imensamente a minha filha.

Houve dias em que chorei, e continuei sem entender, mais uma vez, tantos sentimentos ambíguos. Eu vivenciava a realização de um sonho, e me via tendo que lidar com tormentos inesperáveis.

Ser mãe também é isso, querer racionalizar e não conseguir, apenas sentir, tudo enorme, e ainda ter que lidar com o corpo em profusão hormonal, ao mesmo tempo em que é necessário providenciar o mundo para a vida que acabou de chegar.

Lembro-me, ainda, ao deitar, de sentir um frio dilacerante no peito, mais ou menos entre os seios. Uma sensação de congelamento da pele, meio dolorido, a ponto de ter que preencher com um lenço o que, na verdade, era um vazio, para me aquecer e conseguir dormir.

O cansaço me abatia, mas eu já sentia falta dela, no meu colo. Que loucura! Eu deitava para me recompor o mínimo e tudo o que conseguia fazer era continuar pensando nela, sentindo o cheiro dela, seu batimento cardíaco, pensar se estava respirando, querendo ela nos braços.

Por quase um ano praticamente nem liguei a televisão. Minha atenção estava toda voltada para ela. Lia as mensagens que recebia, mas quase não retornava; interagia timidamente nas conversas dos grupos virtuais. Rede social me dava repulsa. De alguma maneira, tudo aquilo era especial demais e eu não queria dividir com o mundo. As renúncias foram muitas, como quase sempre costumam ser.

Acho bonitinho quando minha mãe falava mais ou menos assim: “não coloque defeitos numa coisa que foi tão perfeita”. Referia-se à minha dedicação à neta dela. Mas, para mim, é impossível não reconhecer que o mergulho foi profundo demais, que em certa medida exagerei e que tudo poderia ter sido mais desencanado. Até porque, depois, essa fatura chegou, o esgotamento se impôs, o corpo pediu socorro e por um tempo eu travei. Já estava há dois anos completamente desconectada do mundo, de mim mesma, sentindo o mofo daquele estado de abafamento.

Isso também passou. O mantra tinha mesmo razão. As soluções foram se apresentando e fui suavizando minhas aflições. Veio a tão esperada vaga na creche, uma medicação para dar uma ajudinha por um tempo, depois o retorno gradual para o trabalho, do qual sentia imensa falta, e a terapia, um antigo desejo que finalmente se materializava e me abria portas.

Nessa caminhada, fui aprendendo que amar e cuidar de um filho não implica abandonar a própria individualidade, que os desafios são infinitos e cada dia será mesmo de um jeito. Impossível planejar demais. Este é o pulo do gato: entender que não é possível ter tudo sob controle e ficar bem com essa condição.

Não é preciso se anular, mas como é difícil não se culpar quando chega mais cansada, num dia, e diz “não” para a criança, apenas adiando a brincadeira por um tempo, porque é preciso pausar. A urgência pode ficar lá fora. Na ternura, a angústia fica menor e não precisamos viver de sobressalto em sobressalto.

Terapia tem esse poder que, no dia a dia, vira magia: aprender a dizer “nãos”. Isso é libertador e, para mim, veio com a maré do puerpério já mais calma, ainda que em plena pandemia. Pretendo nunca parar.

Já ouvi por aí que nós –“mães de hoje”– reclamamos demais e acho desonesto. O que a gente diz vai muito além das dores que sentimos, tão humanas quanto quaisquer outros apertos da alma. Essa ideia de que a mulher-super-mãe não pode falhar e tem que achar tudo bom e divino, ser grata, é cruel. Sinto muito se desagrada uns e outros. Definitivamente, a maternidade não é um destino sem desassossegos, uma função sem revolta.

Tudo isso não anula o óbvio: a experiência de amor na maternidade é singular. A ternura que se sente por um filho é visceral. É afeto demais, entrega demais, é maravilhoso e também exaustivo, acima de tudo, mentalmente. Engraçado é pensar que, se fosse para viver tudo novamente, seria praticamente igual. Por isso mesmo: o coração não mede, ele vai, sem régua para o amor. Depois cata os caquinhos, mas nunca negocia com a razão. Ele só consegue ser o que realmente é.

O tempo, como grande sanador, nos permite olhar para as coisas com o distanciamento que elas merecem. E, assim, vamos criando memórias mais justas, lembrando mais do melhor e menos da estranheza. Nessa hora, os sentimentos já estão mais claros, as vendas caem e os olhos podem sorrir. A saudade assume o posto e exatamente por ter havido tanto amor e cuidado o coração se aquieta. Conseguimos. Agora, acho graça do desespero inexperiente, do medo desinformado, das escolhas confusas e desamparadas. Já posso seguir com sabedoria e humor. Porque no dia seguinte haverá sempre mais, como todo dia, só que melhor.