No dia da morte de Tuninha da Vazante, Filinha foi recolher e limpar o corpo da mãe. Nessa hora Mariinha se levantou. Lai havia forrado a cama com plástico, e Maria Teresa descansou a mãe ali como se repousasse um passarinho. Até aquele momento o banho de sua mãe Tuninha havia sido serviço realizado apenas por sua mãe Mariinha e depois por Lai. Por muito tempo lhe pareceu que elas protegiam algum mistério.
Filinha sempre quis ajudar as senhoras no trabalho, como passou a fazer com Mariinha, que a partir da morte de Tuninha foi parando de vez de caminhar, comer e por fim de recordar lembrança recente de si.
Há muito Tuninha vinha fraca. Um dia, sentiu uma forte dor de cabeça e depois disso outra, e depois disso os movimentos do corpo ficaram ainda mais lentos. Um braço então se esqueceu de ser braço e as pernas se esqueceram de se impor diante da vida, e a voz de minha mãe foi se transformando em amadurecimento. Era como se tivesse voltado a aprender a falar. Mariinha entristeceu sem se deixar notar pelo roseiral. Por dentro da casa nós e Chula entendíamos aquela tristeza. Mas o jeito da minha mãe viver era se fazer de forte. Lai praticamente passou a conviver conosco. Foram por alguns anos elas duas que trabalhavam na vida de mãe Tuninha.
Até aquele domingo. Ninguém pensou que fosse ser num domingo, que é dia de pausa de todo acontecimento. Como nenhuma mãe nunca deveria sucumbir, nenhum domingo nunca deveria ser portador de desaparição de grande amor. Mamãe Mariinha estava acendendo o fogão, Lai molhava a massa do cuscuz. Eu me mexia no quarto, ainda na cama, com Chula me esquentando a costela, quando ouvi a voz fininha de mamãe Tuninha me chamar — Maria Teresa. Ouvi com perfeição. Ela chamava a menina que um dia tinha experimentado um vestido de noiva no sábado, em frente ao espelho, ali no seu quarto.
Corri até lá. Abri a porta. Ela estava de pé em frente ao espelho de mãos estiradas para mim. — Zezito está aqui, minha filha.
Eu chorei.
— Eu já disse que ele não pode te ver de noiva, mas ele insiste.
Eu redobrei o choro.
— Zezito veio me buscar, Maria Teresa. Eu a abracei. Segurei minha vida no abraço de minha mãe e me entreguei àquela calma, àquela paz eterna. Ela me pôs de frente a ela e juntas nos miramos no espelho. Estávamos as duas vestidas de noiva. Éramos as duas, mulheres escuras, desejadas como amor verdadeiro. Mamãe alisava o vestido em seu corpo. Eu alisava o vestido em meu corpo. Nós sorríamos. Comparávamos os detalhes da renda. Voltávamos a nos abraçar. Eu voltava a parar naquele canto quentinho, meu, amparado, desejado, que me segurava com todo o aconchego do mundo. Mamãe era uma noiva linda. Que alegria estarmos juntas naquela imagem do espelho. Foi então que ouvi o tombo.
Despertei. Sentei na cama e lembrei que o espelho não existia mais desde o dia que matei o primeiro boi. Corri até o quarto de mamãe, com Chula latindo aos meus pés. Ela estava caída no chão. Eu estivera ressonando ouvindo sua voz e demorei a despertar? Mamãe estava caída como uma trouxinha, no lugar onde um dia havia existido aquele espelho. O nosso sonho de noivas e de felicidade. Me abaixei ao encontro do corpo de minha mãe e coloquei sua cabeça em meu colo. Chula serenou e se deitou ao meu lado. Eu sentia que mamãe Tuninha não estava mais ali. Aquele nosso abraço, imagem, aparição, tinha sido despedida. Sonhei com minha mãe no dia que fomos mais felizes e assim nos despedimos, envoltas de esperanças. Eu alisava a cabeça de Tuninha, fazia um carinho entre o juízo dela e o meu.
Mãe Mariinha e Lai chegaram à porta do quarto. Mariinha caminhou com dor e não aguentou chegar até nós. Parou encostada num canto da parede, foi se virando e saiu do quarto. Lai forrou a cama. Eu repousei minha mãe. Pusemos água quente numa bacia, peguei um pano e fui limpando seu corpo. Lai foi para a máquina de costura fazer a roupa daquele dia. Mamãe Mariinha chorou sem trégua, depois emudeceu o domingo. Encontrei mistérios no corpo de Tuninha, mas não havia fala para perguntar ou revelar mais nada. A grande notícia daquele dia de domingo foi o silêncio.
Enchemos o quarto de rosas. Seu caixão entalhado em rosarias, última peça de arte de Venâncio, o ferreiro, foi retirado do armazém e no amanhecer caminhamos para o descanso de mamãe. Lai arrumou a carroça, pusemos o caixão. Levei mamãe. Cobrimos de rosas. Fechamos. Amarramos para não escorregar. Dispus as almofadas para mamãe Mariinha sentar na carroça ao lado do caixão. Tocamos o animal. Chula corria na frente, eu puxava a corda. Lai ia atrás amparando nossa história. Nesse enterro não tivemos procissão de gente porque gente quase não existia mais. Os que nos seguiram foram todos os encantados daquele lugar. Que eram tão assombrados que pareciam gente. Tudo foi silêncio nas despedidas de minha mãe.