[N.94 | 2023]

Morra, Amor [fragmento]

Ariana Harwicz

eu me reclinei na grama entre árvores caídas e o sol que aquece a palma da minha mão me deu a impressão de ter uma faca com a qual ia me esvair em sangue com um corte ágil na jugular. Ao fundo, no cenário de uma casa entre decadente e familiar, podia sentir as vozes do meu filho e do meu marido. Os dois nus. Os dois chapinhando na piscina de plástico azul, com água a trinta e cinco graus. Era um domingo véspera de feriado. Estava a poucos passos deles, escondida entre as ervas daninhas. Eu os espiava. Como é que eu, uma mulher fraca e malsã que sonha com uma faca na mão, era mãe e esposa desses dois indivíduos? O que fazer? Escondi o corpo afundando na terra. Não ia matá-los. Deixei cair a faca. Fui pendurar a roupa como se nada. Prendi bem as meias do meu bebê e do meu homem. As cuecas e as camisas. Eu me vi como uma caipira ignorante que pendura roupa e seca as mãos na saia antes de entrar na cozinha. Não notaram. Essa pendurada de roupas foi um sucesso. Voltei a me recostar entre os troncos. Já estão cortando madeira para a próxima estação. Os homens aqui se preparam para o inverno como os animais. Não nos distinguimos em nada uns dos outros. Eu mesma, letrada e formada na universidade, sou mais animal que essas raposas desenganadas com a cara tingida de vermelho e um pau atravessando a boca de par em par. A poucos quilômetros daqui, meu vizinho Frank, o primeiro de sete irmãos, meteu um tiro de espingarda na fuça no Natal passado. Uma linda surpresinha para sua tribo de filhos. O cara seguiu a tradição. Suicídio com espingarda pro tataravô, bisavô, avô e pai, no mínimo dava para achar que era a vez dele. E eu? Uma mulher normal, de família normal, mas uma excêntrica, perdida, mãe de um filho e com outro, quem sabe a esta altura, a caminho. Enfiei devagarinho a mão na calcinha. E pensar que sou a encarregada de zelar pela educação do meu filho. Meu marido me chama para umas cervejinhas no caramanchão, pergunta se escura ou clara. Parece que o bebê fez cocô e tenho que ir comprar o bolo do mesversário dele. Outras mães com certeza preparam elas mesmas o bolo. Seis meses, dizem que não é igual a cinco ou sete. Toda vez que olho pra ele me lembro do meu marido atrás de mim, quase gozando nas minhas costas, quando deu na telha dele me virar e entrar, no último segundo. Se não fosse esse gesto de me virar, se eu tivesse fechado as pernas, se tivesse agarrado o pau dele, não teria que ir à padaria comprar o bolo de creme ou de chocolate e as velinhas, meio ano já. As outras um segundo depois de parirem dizem, já não imagino minha vida sem ele, é como se ele estivesse sempre estado comigo, pfff. Já vou, amor! Quero gritar, mas me afundo mais ainda na terra sulcada. Quero grunhir, berrar e, em vez disso, deixo que os mosquitos me piquem, que se deleitem com minha pele açucarada. O sol me devolve o reflexo prateado da faca na mão e me cega. O céu está vermelho, roxo, treme. Escuto me procurarem, o bebê cagado e o marido pelado. Ma-ma, ta-ta, ca-ca. É o meu bebê que fala, a noite toda. Co-co-na-na-ba-ba. Aí estão. Deixo a faca no capinzal queimado, espero que, quando a encontre, pareça um bisturi, uma caneta, um alfinete. Levanto abrasada e incomodada com o formigamento entre as pernas. Clara ou escura?; a que você preferir, amor. Somos desses casais que usam mecanicamente a palavra “amor” até quando se detestam; amor, não quero ver você nunca mais. Estou indo, e sou uma falsa mulher do campo com uma saia vermelha de bolinhas e o cabelo cheio de pontas. Clara, manda, digo com meu sotaque. E eu sou uma mulher largada que tem cáries e não lê mais. Leia, idiota, digo a mim mesma, leia uma frase inteira. Aqui estamos, os três juntos para uma foto de família. Brindamos pela felicidade do bebê e bebemos as cervejas, meu filho no cadeirão mastiga uma folha. Enfio a mão na sua boca e ele reclama, me morde com as gengivas. Meu marido quer plantar uma árvore para dar ao bebê uma longa vida e não sei o que dizer, sorrio feito uma pata. Será que ele percebe? Com tantas mulheres belas e saudáveis na região, ele foi se enroscar logo comigo. Um caso clínico. Uma estrangeira. Alguém que deveria ser classificada como incurável. Que dia úmido, hem? Parece que vai longe, diz ele. Bebo da garrafa em longos goles e inspiro pelo nariz, querendo estar, exatamente, morta.