[N.52 | 2023]

Na ilha, algum farol

Roberta Ferraz

para Anna Cecília Junqueira, Tila Teixeira,
Laura Magri, Francesca Cricelli e à minha mãe

à generosa escuta de Maria Carolina Fenati

Acabo de sair de um encontro virtual com outras mulheres, no qual lhes disse, comovida, que a maternidade me bagunçou completamente. Comecei a escrever este texto sob o impacto dessa conversa e de dentro de um confinamento, devido à pandemia de Covid-19, que já soma 86 dias, a grande maioria deles vivida no meu apartamento, em São Paulo. Terminei ainda dentro desse confinamento, no dia em que Heitor, meu filho, completou 9 meses e 5 dias. Antes, não poderia imaginar que a nomeação desses tempos sobrepostos – os tempos do corpo que pariu outro corpo e do corpo em isolamento – resumiria, em intensidade, a pessoa em que hoje me experimento, em seu estado de parte e partilha. De quem, partida então, encontra arranjos outros, a fazer dessas parcelas, oferenda e cuidado. Este texto, portanto, situa-se na espessura em movimento desses tempos mesclados, nalgum ponto inquieto em que essas instâncias do corpo se encontram e se questionam.

Falo de um corpo que se perde constantemente. Um corpo que teima em guiar-se pela intuição de uma simplicidade radical da maternidade: um acontecimento que se dá ‘desde que o mundo é mundo’ – e faz da mãe o lume antigo da memória. Nele, me (des) cobri tal qual um hábito ritual, um véu cuja carnação é a evidência do seu comum. Consciente dessa arcaica comunhão, algo próprio e extraordinário, no entanto, é provado. O que acontecerá, individualmente a cada mulher, ao deixar de ser a mulher que não tem filhos? E como habitar essa comunidade descontínua da qual agora faço parte e me qualifica como mãe? O chamamento se projeta como potência e, também, cerco e aspereza. Perdão e cura, e ainda, construída condição para o adestramento, venenos. Obscura e orgânica, sendo absolutamente cultural, a maternidade clareou, a mim, a dimensão política de ser mulher. Revivi, ao gerar e parir, amamentar e maternar, inúmeras situações anteriores em que fui acuada e violada; na mudez do estranhamento de ser mãe, revi as vezes em que consenti que me calasse e adoeci. Senti falta de ouvir, de mulheres próximas ou não, como houvera sido a escuta dessa experiência. Buscar a voz era, mais uma vez, trabalho de rebeldia.

Quando nasceu meu filho, fui ilhada numa língua estrangeira, cujo continente flutuante começava em meu corpo. No rapto que sucede ao nascimento, me vi perdida das palavras. Emudeceu o que eu conhecera, transbordando em silêncio sentimentos que experimentava antigos e, talvez, pela primeira vez. O que balbuciava soava banal, irônico, afetado, como se uma mão social tentasse colocar na minha voz coisas que eu pudesse ou devesse sentir, inundada por um senso-comum patriarcal que entupira as imagens da mãe e da maternidade com um amor incomensurável, um servilismo doce e tingira as sombras de uma depressão pós-parto com sensores escorregadios, um puerpério impossível de tocar como também de trocar; apropriar-se e oferecer.

São inúmeras as cascas que temos de arrancar de nós quando se é mulher e mãe num mundo cultivado por valores pautados pelo controle dos corpos; e do corpo da mãe é cobrado um funcionamento imediato, exemplar. Como se a dádiva da partilha amorosa tivesse como contraparte uma dívida a qual se quitasse com dons de obediência. Afinal, se o que caracteriza uma das mais preciosas singularidades do gênero é o fato de sermos possíveis de gerar a vida, supõe-se que nosso corpo saiba, por natural natureza, servir às metáforas do zelo, da tolerância passiva, do bom-senso. De um cuidar do outro, em primeiro lugar; sendo este outro o filho e seu desdobramento simbólico conveniente à localização da mulher enquanto servidora dos espaços domésticos: a família, a casa, a continuidade de muitos conservadorismos.

Inundada de medo, lidando com a irrupção contínua de um imaginário de inédita violência, uma irrequieta fragilidade convidou-me a olhar o espelho. Estava cega? Ofuscada como o recém-nascido, absorta em instintos e um manancial de memórias, cuja presença fazia do corpo uma coisa cheia demais, insondável, difícil de conhecer. Para além da violência, o leite no seio de minha mãe, a demora infinita de um choro desamparado, o banho quente demais, a sensação de uma fralda nas dobras da virilha, variações e variações de um corpo perdido, do bebê que eu fora, agora reacendendo perfume inesquecível… Tateava, imitando meu filho, essa paradoxal consciência: sentia-me sozinha como nunca antes e, ao mesmo tempo, absolutamente impossibilitada de estar só. Agora eu estava estilhaçada, pelo amor e seus difíceis afluentes. Imersa no maremoto, é possível que aceitemos acomodação e calma num fundo remoto do mar de dentro. Fugindo à exaustão da qual não se escapa, passei dias à deriva, absorta, estrangeira, numa espiral de isolamento que orquestrava o luto pela mulher que eu fora. Sem voz, o olhar imerso num algures suspenso, na deriva dos movimentos, estanque, longe, aqui, na imensa solidão, na falência da linguagem.

É deste corpo, a partir dele, que venho tentando dizer filho, dizer mundo, dizer mãe e dizê-los à margem e contra os olhares complacentes que recebi, vindos de nossa cultura, que sublima na mãe toda a violenta relação que trava com a mulher. Não, não fiquei mais boazinha, coração-mole ou agora sim, porque sou mãe, sei o que é o amor, com a medalha do artigo totalitário. Penso, com Silvia Federeci, que o amor é (também) um trabalho não remunerado. Tento sacudir de mim a jaula no espelho. Fico constrangida com o modo deliberado com que pessoas julgam separar-se (elevar-se) do mundo por meio de uma idolatria do amor materno, como se só a maternidade possibilitasse ao sujeito a experiência do amor numa máxima (utópica) expressão e isso nos absolvesse de nossas mesquinharias e ignorâncias. De nossas indiferenças. Se o amor conhece agora novo timbre e alcance, dentro de mim, não por isso posso afagá-lo sem considerar a complexa rede de problemas e desafios que inaugura. Estou atenta à face tenebrosa dos inúmeros descasos e sujeições impostos à mulher, no verso da sagração da mãe. Não, não sou melhor agora. Os trabalhos apenas começaram.

Essa experiência venho aprendendo a conjugar como uma misteriosa iniciação ao comum, remanejando as forças recorrentes que dizem da separação, do isolamento, do alheamento. Vivo um rapto para nova escuta, uma sensibilidade reiniciada. É bonito não saber mais nada do futuro, por não mais poder conjugá-lo em primeira pessoa… Este é um rasgo que demora: a cicatriz abaixo do umbigo é a linha arroxeada que rasura a ideia de uma cronologia organizada no singular, lembrando-me que fui capaz de gerar e parir como muitas mulheres que se empenham em conhecer e construir relações, independentemente do vínculo materno, apoiadas na vertigem de um descentramento: tecendo no reverso da lógica dos homens que se louvam em elogios à conquista, à sobrevivência, à escassez, à força, à superação premeditada, ao sucesso acima de tudo. Venho descobrindo, estando estilhaçada e bagunçada, que não estar sozinha é a inteligência da vida e que, num sentido misterioso e singelo, uma criança são todas as crianças.

Na lenta dissolução do puerpério, deparo-me com uma quarentena outra, exigida por um corpo social. A similitude entre casa e corpo é inerente a quem experimenta o isolamento. O corpo aberto à espessura do descobrir-me mãe é agora alargado, cavoucada a solidão para além de si, pela dor de tantos outros isolamentos que atravessam suas perdas em distintos graus de amparo e desamparo. Como dar conta, nesse rasgo, com esses fiapos, de uma mínima saúde, um qualquer bem viver em si e consigo que, ao mesmo tempo, não deixe a limitação de espaço direcionar minha energia à alienação? Como, com que mão, cuidar de ouvir e imaginar a aflição de quem vive seus mortos e doentes, contados como números, numa ausência deliberada de política de saúde pública (ou qualquer política pública)? Como me entender entre os poucos, desde sempre eleitos ao favorecimento de uma quarentena privilegiada? Como conciliar essas forças compositoras de meu corpo atual – ser mãe, diante da apatia; fazer-me mãe como uma aptidão necessária que estilhace a apatia?

Com a maternidade, e em dupla quarentena, reconheci mais detalhadamente a fisionomia da criança incendiária de Michaux. O incômodo de estar em casa, num corpo-casa fechado à livre circulação, acentua-se perante o silêncio de meu apartamento, que muitas vezes não bateu as panelas do protesto, para que o bebê dormisse. Esse encarceramento torna-se político duplamente, porque, como mulher e mãe, aprendo que um mundo inclusivo das mais diferentes formas de vida, dos mais inusitados diálogos, dos elos amorosos exuberantes e também conflituosos, exige que eu refaça continuamente o exercício de parir, inaugural de uma nova política de subjetivação.

Quero querer incendiar a casa, ser uma mãe para além de si, para mais do que um ou o filho. Enquanto aciono esses sonhos, irrito-me com o fato de que essas expiações, essa laceração ígnea das próprias forças e desejos, esse germe de revolta, possa arrefecer e perder a sorte de ter chegado a mim. Desse fogo soprado, faço o altar da entrada de minha casa, da entrada de meu corpo, no ensejo de tornar a casa compulsória e o corpo raptado não só um cativeiro que nos proteja do vírus, mas principalmente considere o corpo do outro que nos atravessa, dos filhos, do mundo.

Mais vigorosa acordo para a seriedade em que me sei mulher, aliada aos seres vivos por meio de corpos desobedientes, acolhedores, corajosos e ativos; embora possa não parecer, ao mundo que ainda lê o gesto da ação nas expressões de conquista, à espera de palmas ou piedade. Dizer mãe a mim mesma, enquanto sou mão que ampara o filho, é dobrar o corpo a reconfigurar a elasticidade de minhas costelas, colunas, joelhos. Vacilo, emendo derrapes cotidianos, engasgo, titubeio. Nem sempre se acha o ritmo que embale bem o modo de sonhar a que se nasce, por direito. Mas reforça-se a cada segundo que não se pari para a guerra ou o controle dos corpos.

Como escreveu Winnicott, num ensaio de 1968, publicado em Bebês e suas mães,1 no enlace dos corpos de mãe e filho, o que está em questão vai muito além da garantia de uma saúde física e das necessidades básicas: “estamos preocupados com a riqueza da personalidade, a força do caráter e a capacidade de ser feliz, assim como a capacidade de se revoltar e de fazer a revolução” (p. 37). Construir essa vivaz desobediência pede honestidade ao olhar o mundo. A maternidade, intensificada pela quarentena, martela esse incômodo em mim. Tenho a obrigação de nela me deter, porque posso maternar e posso estar em casa – ao contrário de tantas mulheres às quais são negados um e outro – e aprender, na doação incessante que um filho demanda, que é o mundo quem pede. O mundo em nós e em nossa estranha diferença, que se lhe ampare, cultive-o em generosidade, trabalhe para que essa consciência não se contenha num corpo habituando-se a ser mãe apenas dentro do domesticável.