[N.33 | 2023]

Não fossem as sílabas do sábado [fragmento]

Mariana Salomão Carrara

Meus oito tentáculos obstinados em volta da bebê esperando a hora em que eu não aguentaria mais e sucumbiria polva-gigante-do-pacífico estafada no chão, os tentáculos estatelados e a bebê vulnerável no oceano, meu útero tinha voltado a mensalmente se ocupar da sua sina, prontíssimo para mais um rebento, e eu me retorcia em cólicas, confusa sem os remédios que podiam acabar indo no meu leite que já ameaçava secar, todos disseram, se sangrar acaba o leite, Catarina e eu ainda numa simbiose insuportável, não podia morder uma pera um chocolate um pepino sem imaginar como reverberariam nela, sempre uma continuação do meu esôfago. 

O sangue exorbitando das minhas próprias fraldas, a tontura da pressão baixando, Catarina enfim adormecida ao lado, na minha cama, se eu tentasse botar no berço acordava, eu tinha de ir ao banheiro, só um segundo, muito rápido, os tentáculos podem parar um minuto não é possível que não possam mesmo, talvez esquentar uma bolsa de água para amparar o útero. 

Os bebês de repente aprendem as coisas, aprendem a engolir, a sorrir, não avisam, não ensaiam, de repente recém-nascidos completamente imóveis passam a bebês que estendem um braço depois um joelho e quase engatinham, ou giram na cama e tateiam o vazio que encontram ao lado, e tudo isso em silêncio, talvez as primeiras descobertas precisem ser clandestinas, só desabam num choro inacreditável quando descobrem o chão sob a cama, o grito desfolegado, meu salto do vaso ainda empapada de sangue, primeiro a certeza de que não será uma desgraça não cabe outra desgraça nesta casa estou para sempre livre disso mais ninguém pode cair da minha vida, em seguida o medo de achar um sangue que não fosse o meu, a cabecinha frágil as sobrancelhas fracas os ombros que cabiam ambos numa só mão, se ela ficaria incapaz de andar, ou de falar, ou de pensar, retirei do chão um bebê, meu deus, retirei do chão o meu bebê, um movimento que ficou gravado nos braços, a delicadeza que precisa ter aquele resgate, o choro agônico. 

Catarina foi escaneada em todos os aparelhos possíveis de todas as salas, cada pequena veia vasculhada, conferidas as suas integridades todas, afora um hematoma e um perpétuo medo de correr pular viver, não guardou nada daquele descuido. A mãe do André segurando minha mão nas salas de espera, apiedada de mim e da minha exaustão, a Madalena chegando direto do trabalho, ainda de avental escolar sem saber que notícias eu tinha, e estava tudo bem, precisava de mais tentáculos, só dois não dão conta, botaram um médico para conversar comigo, primeiro me confortou dizendo que era comum, os bebês de repente aprendem e acontece, que eu não me culpasse, perguntou se eu não tinha ajuda, se eu não pensava em contratar uma babá, e fiquei me perguntando como era com as mulheres pobres ou miseráveis quando um filho cai, se alguém pergunta se a mãe pensa em contratar uma babá, o que perguntam às babás quando lhes tomba o filho, depois alongou as perguntas, as pessoas desconfiam de viúvas que derrubam bebês, se eu a deixava na cama com frequência, se eu sabia o perigo disso, se eu tinha ideações contra a minha filha, se eu queria conversar com outros profissionais e ao cabo da entrevista talvez eu tivesse todo tipo de ideações contra todas as pessoas e não gostaria de voltar a conversar com ninguém.

De volta ao apartamento Catarina segurou um brinquedo qualquer, riu e me perdoou. Ela sempre me perdoa, é repleta de compreensões. Depois Madalena e a mãe do André despejaram sobre mim um arsenal de diagnósticos sobre minha rotina, congelar leite, comprar latas de leite, que eu aceitasse uma babá, a faxineira semanal já não dava para nada, no momento em que dormia a Catarina eu precisava lavar a louça e a roupa e cozinhar, quando é que eu ia dormir, e isso era uma coisa que eu também não sabia, se chegaria um tempo em que eu voltaria a dormir, Madalena insistia que ela pagaria uma babá e que eu precisava enfim compreender que eu não tinha oito tentáculos, disse assim mesmo, como se alguma vez eu tivesse contado a história do polvo gigante do Pacífico, e fiquei tão abestalhada com sua onisciência que o meu silêncio foi atordoante, insistiam mais, já pegavam referências, fulana que cuidou da fulana filha da fulana, será que já está velha aquela, mas eu não queria nenhuma babá, uma babá seria o retrato público da minha ineficiência, uma babá segurando a Tina enquanto eu pudesse me banhar ou deitar, uma mulher que eu ficaria olhando sabendo que era uma mulher que tinha dado conta de tudo, dos três ou quatro filhos sem nenhuma babá, o genitor morto ou ausente, a babá que ainda por cima trabalhava fora de casa sem nenhum espaço para depressões, uma mulher guerreiríssima extraordinária espremendo minha miséria junto com os sucos frescos que faria para nós com as frutas que já traria da venda ao chegar, depois das três conduções que pegaria quando deixasse os três ou quatro filhos alguns na creche e outros na escola, isso porque os mais novos estavam sem creche antes mas ela pediu na Justiça e com a graça de deus conseguiu, eu não suportaria a evidência dessa mulher na minha frente enquanto eu remoía insistente a minha ferrugem, mas está notório que você precisa de alguém Ana eu trabalho fora e ela mora a duas horas daqui e não dirige, “ela” no caso sendo a mãe do André, ali presente e atarantada com a menção ao seu nome, já tão atarefada com os outros dois netos, filhos dos filhos que permaneceram vivos e portanto chamavam mais atenção, hoje ficou mais do que claro, o que mais você quer que aconteça?

A babá em tese seria também para que eu me animasse aos poucos a trabalhar, outra coisa que eu adoraria adiar ao máximo podendo culpar Catarina, não consigo compreender uma babá Madalena do que são feitas essas mulheres como podem criar tantos filhos e criar os filhos dos outros e não desistirem não derrubarem nenhum dos bebês, será possível que somos feitas de outro material, que porcaria nos constitui, olha não importa do que você é feita Ana é de qualquer coisa que não está dando conta meu deus seu marido morreu sua mãe também está morta e você tem um bebê.