[N.100 | 2024]

Natal e Órbita

Catarina Barros

Natal

Ela diz que não gosta de sexo: há qualquer coisa naquilo que a envergonha, que a faz sentir-se ridícula. Tudo lhe parece estranho: preliminares, o tamanho do pénis, o arfar do homem, a queda do orgasmo. Tem vergonha do corpo: embora saiba que é bonita, não gosta do peito, caído, um seio mais pingado que o outro. Diz que passa por aquilo porque é o preço a pagar pelo amor que deseja. Se pudesse, em vez de sexo, faria o jantar – um jantar demorado, condimentado, para várias pessoas. O que ela queria era uma família, era muita gente na mesa, as vozes umas em cima das outras, lutando por se fazerem ouvir – e ela também. O que ela queria era o Natal, o réveillon, as festas de anos, o exagero dos presentes, alguém que gostasse muito do que ela escolheu – e lho dissesse. Mas, em vez disso, tem de estar ali, debaixo de um homem, ou por cima, se nessa noite tiver bebido, para ganhar coragem, desconfiando que, dentro de minutos, ele já não a vai amar, quanto mais até ao Natal.

Órbita

São as nossas testemunhas mais fiéis as paredes, os móveis, as plantas, os gatos, as fotografias de outro tempo espalhadas pela casa, a fruta que deixamos por comer e que, meio apodrecida, temos vergonha de descartar. Estirados sobre o sofá, um braço que pende, o dedo quase no chão, pernas sobre as almofadas, duas, ao lado da cabeça – diante da televisão, os nossos corpos, juntos, parecem uma aranha escura. Às vezes temos visitas. Nessas ocasiões, os nossos corpos separam-se, eu torno-me outra. Os meus amigos dizem: parecem irmãos. Mas os teus amigos não dizem nada. Quando estão cá, o meu corpo sobra. É como se uma das tuas patas tivesse ficado em mim, eu, com os meus oito olhos virados para o chão, incomodada com o facto de os teus amigos não serem tu. Se os meus amigos permanecerem tempo suficiente no interior da casa, acabarão por me surpreender a chorar enquanto dobro as meias e me pergunto, de tudo, se deveria ter feito mais, ou menos. Ouvir-te-ão perguntar-me se podes o que quer que seja, espantando-se por me caber a mim o sim e o não. Até aqui, viam-te como o satélite natural da minha gravidade – qualquer coisa que faço girar sem esforço. Quem nos vê, não se pergunta.