[N.39 | 2023]

No quintal da minha infância

Alice Bicalho

Ser mãe: o extraordinário é o mais comum. E não seria exagero dizer que o comum é o mais bonito. É o que sinto. Ainda assim, eu tenho medo da morte. Sempre tive e agora tenho mais. Um medo enorme. Por isso, eu cuido da vida. Sem saber muito bem para quem, em pensamento, eu peço para viver por muito tempo com a presença da menina que já foi bebê e cresce. Desde março de 2020, tem sido assim: eu peço isso silenciosamente, todos os dias.

Eu soube que a minha filha já existia quando ela apareceu no meu sonho, sorridente, muito parecida com quem ela realmente é. O amor, ele está no encanto que tenho pelo traço que ela faz no papel, pelo timbre da sua voz, pela alegria que ela tem, pelo jeito como dança e ri. Ao mesmo tempo, é preciso pensar que eu exerço uma função e que, muitas vezes, não sei como fazer, eu vou aprendendo e só sei depois que passou. Nós somos absolutamente contemporâneas, esse é o encanto e o medo.

Não gosto de pensar no mundo que perdemos, nem no que virá ou quando virá. Para sobreviver à ansiedade, prefiro pensar que a realidade é inalienável e que, portanto, eu que me adéque. Vou reaprendendo a gostar de brincar, apesar de me sentir muito velha para isso. Eu já brinquei e fantasiei muito, e dessa época só continuo gostando de inventar. Hoje eu gosto de ser adulta, essa é minha brincadeira. Ao mesmo tempo, não é possível ser só adulto ao lado de uma criança. Então, vou aprendendo a ceder, a deixar-me permear e atravessar pelo novo, e ele vai, muitas vezes, abrindo portas às reminiscências. Antigos sons, cheiros, memórias, sentimentos vêm me visitar e por um átimo tomam o meu corpo como uma palavra na ponta da língua, um sopro que não chega a se materializar. Isso é ser criança de novo? Ou ser o que eu era quando criança: uma pluma em um vendaval de sensações.

Uma imagem não sai do fundo dos meus olhos: o quintal da casa em que vivi nos meus dez anos. Um bosque gramado, numa vila perto da floresta. E, talvez, ser mãe seja parecido com minhas tardes ali, sozinha. O maior encanto que me fazia ir e o grande medo indo junto. O medo virando alguma história que eu inventava e ia narrando para conseguir dar o próximo passo. E o encantamento sendo sempre o mais difuso a atravessar tudo, fazendo valer a pena.