[N.10 | 2023]

O acontecimento [fragmento]

Annie Ernaux

Sábado, dia 18, peguei bem cedo o trem para Paris. Fazia muito frio, tudo estava branco. No vagão, atrás de mim, duas garotas falavam sem parar e riam de tempos em tempos. Escutando-as, eu me sentia sem idade.

A sra. P.-R. me recebeu com exclamações sobre o frio glacial e me fez entrar rapidamente. Um homem estava sentado na cozinha, mais jovem do que ela, com uma boina na cabeça. Ele não parecia surpreso ou incomodado por me ver. Não lembro se ficou ou se foi embora, mas deve ter dito algumas palavras, pois achei que fosse italiano. Na mesa, havia uma bacia cheia de água fumegante, onde boiava um cano fino e vermelho. Compreendi que era a nova sonda que ela pretendia enfiar em mim. Eu não tinha visto a primeira. Aquilo parecia uma serpente. Do lado da bacia, havia uma escova de cabelo. 

(Se eu tivesse de representar por um único quadro esse acontecimento da minha vida, pintaria uma mesa com uma bacia esmaltada onde flutua uma sonda vermelha. Ligeiramente à direita, uma escova de cabelo. Não creio que exista um Ateliê da fazedora de anjos em nenhum museu do mundo.) 

Como da primeira vez, ela me disse para ir até o quarto. Eu não tinha mais medo do que ela ia fazer. Não senti dor. No momento em que retirou a primeira sonda para introduzir a da bacia, ela berrou, “você está em pleno trabalho!”. Era uma frase de parteira. Eu não tinha pensado até ali que tudo isso podia se comparar a um parto. Ela não me pediu mais dinheiro, só queria que depois eu devolvesse a sonda, pois era difícil conseguir desse modelo. 

No meu compartimento, na volta de Paris, uma mulher lixava as unhas interminavelmente.

O papel prático da sra. P.-R. termina aqui. Ela havia concluído sua tarefa, iniciara o processo para eliminar o problema. Não tinha sido paga para me assistir na etapa seguinte. 

(No momento em que estou escrevendo, refugiados kosovares em Calais tentam entrar clandestinamente na Inglaterra. Os coiotes exigem somas enormes e às vezes desaparecem antes da travessia. Mas nada detém os kosovares, nem qualquer migrante dos países pobres: eles não têm outra salvação. Perseguem-se os coiotes, deplora-se a existência deles como há trinta anos a das mulheres que abortavam. Não se questionam as leis e a ordem mundial que os induzem. E deve muito bem haver, entre os coiotes de imigrantes, como antigamente entre aqueles de crianças, alguns que são mais sérios do que outros.

Arranquei bem rápido da minha caderneta de endereços a página onde figurava o nome da sra. P.-R. Nunca o esqueci. Reencontrei esse sobrenome seis ou sete anos depois, em um aluno da quinta série, loiro e taciturno, com dentes cariados, grande e velho demais para aquela turma. Nunca pude chamá-lo para tomar a lição, ou ler seu nome numa folha, sem associá-lo à lembrança da mulher da passagem Cardiner. Esse garoto só existiu para mim acoplado a uma velha fazedora de anjos, de quem parecia ser o neto. Quanto ao homem que eu tinha encontrado na cozinha da sra. P.-R., sem dúvida seu companheiro, revi-o por muitos anos em uma pequena mercearia de Annecy, na praça da Notre-Dame: um italiano com sotaque forte e uma boina na cabeça. Tanto que hoje não consigo mais distinguir a cópia do original, a ponto de realocar na passagem Cardiner, em um sábado glacial de janeiro, aquele que me vendia fitas de entretela e botões de jarina nos anos 1970, ao lado de uma pequena mulher ágil e sem idade.) 

Ao descer do trem, liguei para o dr. N. Disse que haviam posto uma sonda em mim. Talvez eu tivesse a esperança de que ele me dissesse para ir a seu consultório, como no mês anterior, e desse prosseguimento à tarefa da sra. P.-R. Ele ficou mudo, depois me aconselhou Masogynestril [Não tenho certeza do nome desse antiespasmódico uterino, que não é mais vendido. – N.A.]. Pelo seu tom, compreendi que me ver era a última coisa que ele desejava e que não devia mais telefonar. 

(Eu não podia imaginá-lo – como agora sou capaz de fazer – subitamente molhado de suor em seu consultório ao ouvir aquela voz de moça declarando que estava andando por aí havia dois dias com uma sonda no útero. Paralisado pelo dilema. Se aceitasse vê-la, a lei o obrigava a retirar o mais rápido possível aquele dispositivo e fazê-la continuar a gravidez não desejada. Se recusasse, ela podia morrer por isso. Nenhuma das alternativas era boa, e ele estava sozinho. Então, Masogynestril.) 

Entrei na farmácia mais próxima, em frente ao Metrópole, para comprar o remédio do dr. N. Era uma mulher: “Você tem receita? Não podemos vender esse medicamento sem receita.” Eu estava no meio da farmácia. Atrás do balcão, dois ou três farmacêuticos de jaleco branco me olhavam. A falta de receita sinalizava a minha culpa. Eu tinha a impressão de que eles viam a sonda através das minhas roupas. Foi um dos momentos em que estive mais desesperada. 

(Você tem uma receita? Precisa de uma receita! Nunca mais pude escutar essas palavras, e ver a cara do farmacêutico logo se fechar quando a resposta era não, sem ficar arrasada. 

Escrevendo, devo às vezes resistir ao lirismo da cólera ou da dor. Não quero fazer neste texto o que não fiz na vida naquele momento, ou que fiz muito pouco – gritar e chorar. Somente permanecer o mais perto possível da sensação de um fluxo inerte do sofrimento, como a que tive com a pergunta da farmacêutica e com a visão de uma escova de cabelo ao lado da bacia de água onde estava imersa uma sonda. Pois a perturbação que sinto ao rever imagens, ao voltar a escutar palavras, não tem nada a ver com o que eu sentia então; é apenas uma emoção da escrita. Quero dizer: que permite a escrita e constitui o signo de sua verdade.)