[N.70| 2023]

O custo de vida [fragmento]

Deborah Levy

9 – Perambulação noturna

Minha mãe me ensinou a nadar e a remar. Ela nasceu na África do Sul, cresceu na “cidade dos ventos” de Porto Elizabeth e sentiu saudades do mar todos os dias das quatro décadas em que viveu na parte norte de Londres. Dizia sempre que o segundo romance de Doris Lessing, Martha Quest, descrevia com acuidade forense sua própria vida enquanto ela crescia na esterilidade e na ignorância da cultura colonial branca da África do Sul. Na velhice, minha mãe encontrara uma técnica para nadar em que “se entregava totalmente à água”. Isso envolvia boiar de costas, “esvaziar os pensamentos” e “se entregar ao fluxo”. Mostrou-me seu truque nos lagos turvos de Hampstead Hearth, boiando ao estilo de Ofélia com os patos e plantas e folhas.

Ainda tento fazer seu truque, mas só consigo flutuar por dez segundos antes de começar a afundar. Do mesmo modo, quando dirijo a mente à morte da minha mãe, só consigo fazer isso por dez segundos antes de começar a afundar.

Guardei uma foto da minha mãe na altura dos seus vinte e muitos anos. Ela está sentada numa pedra, num piquenique com amigos. Seu cabelo está molhado porque acabara de nadar. Há uma introspecção em sua expressão que agora relaciono ao que havia de melhor nela. Posso ver que está próxima a si mesma nesse momento aleatório. Não tenho certeza de achar que a introspecção era o que havia de melhor nela quando eu era criança e adolescente. Para que precisamos de mães sonhadoras? Não queremos mães cujo olhar se perca para lá de nós, desejosas de estar em outra parte. Queremos que ela seja deste mundo, vivaz, capaz, inteiramente presente para as nossas necessidades.

Será que eu debochava do lado sonhador da minha mãe e depois a insultava por não ter sonhos?

Como diz a velha história, o pai é que é o herói e o sonhador. Ele se distancia das necessidades deploráveis das mulheres e crianças e marcha rumo ao mundo para fazer o que quer que tenha de fazer. Espera-se que ele seja ele mesmo. Quando volta ao lar que nossas mães criaram para nós, ou é bem recebido pelo bando ou se torna um estranho que acabará por precisar de nós mais do que nós dele. Conta-nos um pouco do que viu em seu mundo. Nós lhe damos uma versão editada do que vivemos todos os dias. Nossa mãe vive conosco nessa vida e a culpamos por tudo, porque ela está perto. Ao mesmo tempo, precisamos que ela sinta ansiedade por nós – afinal, nosso dia a dia é cheio de ansiedade. Se não revelamos a ela os nossos sentimentos, esperamos misteriosamente que ela ainda assim os compreenda. E se ela se desloca para além de nós, chegando perto de ser alguém que não está a nosso serviço, terá transgredido a tarefa mítica e primal de ser nossa protetora e nutriz. No entanto, se se aproxima demais ela nos sufoca, infectando nossa frágil coragem com sua ansiedade contagiosa. Quando nosso pai faz as coisas que precisa fazer no mundo, entendemos que é sua obrigação. Se nossa mãe faz as coisas que precisa fazer no mundo, sentimos que ela nos abandonou. É um milagre que ela sobreviva às nossas mensagens contraditórias, escritas com a tinta mais venenosa da sociedade. É suficiente para enlouquecê-las.

Acho que sempre, ou quase sempre, em todas as infâncias e em todas as vidas que se seguem, a mãe representa a loucura. Nossas mães serão sempre as pessoas mais estranhas e loucas que já conhecemos.

Marguerite Duras, A vida material (1987)

Quando eu era adolescente, a maioria das discussões com minha mãe era por causa de roupas. Ela ficava perplexa com aquilo que havia dentro de mim e que se expressava do lado de fora. Não conseguia mais me alcançar ou me reconhecer. E era precisamente esse o objetivo. Eu estava criando uma persona que fosse mais corajosa do que eu de fato me sentia. Arriscava-me a ouvir zombarias nos ônibus e nas ruas dos subúrbios onde morava. A mensagem secreta à espreita no zíper das minhas botas de plataforma prateadas era que eu não queria ser como as pessoas que estavam zombando de mim. Às vezes queremos despertencer tanto quanto queremos pertencer. Num mau dia, minha mãe me perguntava, “Quem você pensa que é?”. Eu não tinha ideia de como responder a essa pergunta aos quinze anos de idade, mas estava em busca do tipo de liberdade que uma jovem mulher dos anos 1970 não possuía socialmente. O que mais havia para fazer? Tornar-se a pessoa que outro alguém imaginou para nós não é liberdade – é empenhar nossa vida ao medo de outra pessoa.

Se não podemos pelo menos imaginar que somos livres, estamos levando uma vida que é errada para nós.

Minha mãe foi mais corajosa em sua vida do que eu jamais tinha sido. Escapara da família protestante de classe alta, branca e anglo-saxã que amava e se casara com um historiador judeu sem um centavo. Envolveu-se com ele na luta pelos direitos humanos na África do Sul da sua geração. Inteligente, glamourosa e sagaz, ela não chegou à universidade na altura dos seus vinte e poucos anos. Ninguém achava necessário lhe dizer que tinha uma abundância de talento. Esperava-se que as mulheres da sua classe social se casassem assim que saíssem de casa ou depois de seu primeiro emprego. Que deveria ser um emprego qualquer e não uma carreira séria. Minha mãe aprendeu a datilografar, aprendeu a estenografia e a usar roupas que agradavam aos seus chefes. Desejava ter sido uma secretária menos talentosa, mas foi sua rapidez na datilografia que alimentou e vestiu seus filhos quando meu pai se tornou prisioneiro político. Ela me deu muito trabalho, além do esperado para uma filha obediente, mas agora vejo que eu não queria deixar que ela fosse ela mesma, para o bem e para o mal.

Um ano depois que me mudei com minhas filhas para o apartamento na ladeira, minha mãe ficou fatalmente doente. Eu passava a noite inteira acordada à espera de um telefonema do hospital, cada hora marcada pelo canto dos vários pássaros do meu relógio de pássaros. O rouxinol cantava pouco antes da meia-noite, como se estivesse empoleirado nos galhos da árvore gotejante no estacionamento. Ela sempre dissera que quando morresse queria que seu corpo fosse levado para o pico de uma montanha e ali devorado pelos pássaros.