[N. 121 | 2024]

O gosto da voz

Autora anônima

Um quadril que balança solto. Um quadril que dança, ativo, em encontro com a música. Esse foi o ponto que toquei ontem em minha sexualidade. O ventre que abrigou dois filhos e se abriu para a passagem deles se move agora em solitude, em encontro comigo.

O desejo da maternidade, tão vivo em mim desde criança, revelava muitas dores. Entre elas — e talvez a mais premente: a da sexualidade. Sexo, para mim, era algo terrível, obrigatório apenas para manter um relacionamento e para que o homem sentisse prazer. Impossível uma mulher sentir prazer em algo tão sujo. Eu não tinha a menor vontade de me relacionar com homens. Na primeira vez que um deles tentou, eu estava como morta, paralisada. Eu tinha dezessete anos, foi alguns dias depois da morte do meu pai. Ele era um professor da escola, com quem eu conversava muito e em quem confiava. Fiquei sem falar com ele direito, e anos depois ele me pediu desculpas. Pouco depois da morte do meu pai e do acontecido com o professor, desenvolvi um líquen escleroso na vulva.

Durante a preparação para a concepção da minha primeira filha, que durou cerca de dois anos, estudando sobre o parto e descobrindo-o como um evento também sexual, me abri a um olhar mais aprofundado para a sexualidade em mim, que eu sabia estar desconectada da potência da vida. Fui aos poucos observando a minha relação com a menstruação, com as cólicas que sentia, com o prazer e o sexo, com o meu corpo. Nesse caminho, fui juntando fragmentos do que mais tarde eu elaboraria como um abuso que vivi quando bem pequena.

Quando a clareza possível veio à tona, vivi um luto que incluiu dores físicas e emocionais. Antes de superar esse luto (não sei se ele vai ter fim), eu engravidei, e ele se fragmentou em pequenos lutos que fui colecionando: por muitos detalhes do abuso, por emoções e sensações e sentimentos que vinham à tona e que eu nunca tinha me permitido trazer à consciência, pela concepção da minha filha tão desejada que agora passava a habitar, ainda que dentro de mim, um mundo tão perigoso e hostil (embora também potente e promissor). Havia o luto por enxergar agora com clareza o motivo pelo qual sempre sentira meu corpo tão sujo; havia o luto por carregar um ser humano dentro dele. Fui também olhando para tudo o que eu carregava além da minha filha e abrindo espaço para perceber a potência que se escondia em mim, em meu corpo. Foi o começo.

No parto, nos intervalos entre as contrações, eu sonhava com mulheres que expressavam sua potência sexual ao dar à luz, e sabia que eu estava em contato com toda essa força, na companhia de todas elas. Eu sentia que minha filha estava abrindo caminho para uma nova relação com meu corpo, com minha sexualidade. Uma relação inédita comigo mesma surgiria, eu tinha certeza. Passei o parto quase inteiro na água. Eu precisava me recolher e mergulhar em minha intimidade. Ela chegou na banqueta, meus pés no chão, e eu fiquei maravilhada. Nunca tinha sentido aquilo que tomou meu corpo, minha mente, minha vida.

No pós-parto, comecei a sentir muito medo de ela ser abusada. Meu companheiro me acompanhou em todas as descobertas sobre minhas dores ocultas e foi fundamental para que eu encarasse tudo — ele sabia dos meus medos. Ele também temia fazer algo que a fizesse se sentir abusada. Nós conversávamos muito sobre isso, avançamos com muito cuidado. Com ela aprendi a cuidar e tratar a vulva com reverência, com delicadeza. Eu entendi que não iria machucá-la se a tocasse, como imaginava, que podia fazer sua higiene com carinho, informando-a sobre cada passo. Ela confiou em nós e eu passei a sentir cada vez mais alívio por ser mulher.

Ao mesmo tempo que vivia um sonho, eu estava imersa em autoinvestigações invasivas e tentava ser suficiente para minha filha sem deixar que ninguém mais tocasse nossa relação. Era nítido o quanto eu estava embolada nessa relação. O estado de negação do corpo que eu vivera minha vida inteira, talvez iniciado como recurso para escapar de sentir o abuso, ficou mais intenso. Nessa época, minha vida sexual estava perdida em algum buraco escuro. Eu não tinha nenhuma libido. Nesse contexto, precisei voltar minha atenção para o corpo físico, abrir com esforço espaço para outras pessoas me apoiarem nos cuidados com a minha filha.

Depois desse período, passei a me sentir mais viva, e o desejo sexual começava a aparecer de novo. Fui me aprofundando em camadas de bloqueios e comecei a sentir mais prazer no sexo. Ainda tinha muitas questões e desafios, mas estava mais leve e interessante a vida sexual. Foi nesse momento que engravidei do meu filho. Durante a gravidez eu segui com libido e vivemos relações sexuais. Fui percebendo mais abertura e mais prazer, embora ainda sentisse o sexo como algo de algum modo errado.

Um ano depois do nascimento do meu filho, há pouco mais de um ano e meio, vivi minha segunda crise do líquen escleroso na vulva. Os sintomas no corpo me trouxeram um chamado para me aprofundar ainda mais na minha sexualidade. Surgiram contornos mais claros e caminhos para tomar. Faço tratamentos físicos e emocionais e tenho vivido experiências de muita potência, da sexualidade como um lugar de criação, de prazer de viver e de abertura para possibilidades.

Vivo muitas crises com o companheiro, e também um aprofundamento intenso da nossa relação. Temos escrito cartas um para o outro. Tenho contemplado a sedução, os jogos, a verdade, os caminhos, a entrega — tenho experimentado a entrega. Tenho experimentado me movimentar e já não me sinto uma donzela indefesa que precisa que alguém a salve do abandono e da rejeição e a deseje. Tenho experimentado desejar. Tenho me deixado desejar. Tenho desejado.

Escrevi isto numa noite passada:

Eu quero respostas, eu quero sentir o gosto da voz. Vozes me encantam mais do que rostos, mais do que corpos. A voz tem algo de concreto ainda que abstrato também. O som se propagando no ar. O vento. O vento traz as palavras. Vento vento vento que arrepia, que refresca, que me faz tremer, que toca a minha pele sem eu pedir, sem querer. O vento me conta sussurrando o que eu queria tanto me dizer. O vento tem gosto de voz, da voz rouca dele que chegou e se aninhou em mim inesperadamente. Eu senti seu corpo, a pele macia das costas por onde deslizei minhas mãos. Ficamos alguns segundos sentindo os corpos um do outro até que eu disse algo que encerrou aquele momento de carinhos. Ele voltou para seus afazeres. Sim. Eu sinto. Eu desejo a força delicada do toque da pele. Desejo o abraço presente. O beijo suave que encontra a maciez dos lábios, da língua em movimentos arredondados a desbravar sem pressa o universo do outro. Sei que não vou chegar a nenhum lugar além do encontro. Eu sinto o desejo da morte — de me entregar completamente à terra e me movimentar como meu corpo pede a cada instante. Me emociono ao perceber que estou mesmo viva. Todo o meu corpo pulsa e vibra. Todo o meu corpo.