[N.7 | 2023]

O parque das irmãs magníficas [fragmento]

Camila Sosa Villada

Laura era o nome daquela garota grávida que nos acompanhava em nossas noites de rondas proibidas. A única que havia nascido com uma flor carnívora entre as pernas, diferente de nós, que tínhamos um animal adormecido bem guardado na calcinha ou uma vagina aberta com bisturi limpo. Laura já estava grávida quando cheguei ao Parque. Uma gravidez de cinco meses, bem cuidada, pois na verdade era dupla e acima da qual reinava a incógnita porque ela decidira não saber o sexo nem a condição de irmandade das duas crianças que levava no ventre. 

Na primeira noite em que a vi, usava o cabelo solto e longo até a cintura, todo bagunçado, era perceptível que o penteava de vez em quando para conseguir uma lisura eletrizada que o arruinava por completo. Mas a beleza da questão não era isso. A beleza residia no fato de Laura adornar essa cabeleira longa e ressecada com carrapichos e folhas do seu improvisado lugar de trabalho: os cantos escuros do Parque onde de dedicava à fornicação anárquica ao ar livre. Bastava-lhe se jogar de costas e procedia aos úmidos intercâmbios com os milhares de homens que a procuravam. Até no seu estado de gravidez contava com a supremacia da sua vagina acima de nós. Chegava e partia do Parque de bicicleta e gostava de trabalhar cedo, nunca além das três da manhã. “Continuamos a ser pobres”, dizia, enquanto guardava entre as tetas o arrecadado no expediente. 

Assegurava que a gravidez a tinha salvado, que antes levava uma vida da qual era melhor não se lembrar. Estivera presa por quase dois anos por narcotráfico. No cárcere, tatuou no antebraço esquerdo, ela mesma, as palavras “Maldita vida”, decoradas com algumas flores que se emaranhavam entre as letras. Laura conhecia todos os vícios e todas as desventuras, tinha apunhalado o pai nas costas quando este expulsava sua mãe com bicudas na cara (depois o arrastou até a calçada e o deixou jogado ali, para que alguém se encarregasse). Era tão jovem como nós, não passava dos vinte e três. Não sabia quem ou quais eram os pais dos dois filhos que levava dentro de si, porém, mal soube que estava grávida, fez o exame para se certificar que não tinha HIV e decidiu mudar de vida. Decidiu economizar todo o dinheiro possível para que, quando as crianças nascessem, ela não precisasse voltar à rua. 

Não se prostituía somente: na cesta de sua bicicleta, levava comida para vender. Às vezes eram café e medialunas; outras vezes, empanadas ou fatias de pizza fria. Houve noites de calor em que levava fruta, que mantinha fresca com gelo e sal grosso. Escrevia-nos bilhetes que escondia em nossas bolsas sem que nós notássemos e, quando estávamos distraídas, nos surpreendia com um tapão direto em nossos paus: “Como anda a Camilita?”, “Como anda a Encarnita?”, “Como anda Mariita?”, e zás, nos apertava o sexo com sua mãozinha minúscula. A gente se desmanchava de tanto rir e agradecia sua ternura brutal. Era sempre uma festa ver sua bicicleta chegar, soando como uma caixa cheia de campainhas, sua pança enorme que era como um augúrio, sua decisão de mudar tudo, sua maneira de nos demonstrar que era possível prescindir de quase tudo que nos disseram ser imprescindível.

Aos dezesseis, escapou de uma prisão para menores saltando pelos telhados como um demônio confuso e se tornou prostituta por instinto. Aos vinte e um, explodiu a balas os testículos de um ex-namorado cafetão e deixou sua sogra inconsciente na base da porrada. Tentou o suicídio mais de uma vez e até chegou a ver a luz branca no fim do túnel em algumas dessas ocasiões. Mas seguia ali conosco, seu cabelo sempre salpicado de capim flutuando no rastro de sua bicicleta, como se fossem grilos.

No dia em que seus filhos nasceram, estávamos todas esperando no quarto ao lado, uma salinha pintada de celeste, munidas de todos os talismãs de que éramos capazes. Assistíamos ao fim da novela numa televisão de doze polegadas, mas mais atentas ao ritmo das contrações de nossa parturiente. Nadina, que era enfermeiro de dia, sabia tudo acerca de partos porque tinha sido criado no meio da montanha e ajudara sua mãe a trazer vários irmãos ao mundo, assim como cabras, bezerros e cães atravessados. Estávamos nervosas, a possibilidade de ver um parto nos deixava enlouquecidas. Para algumas, era a primeira vez que veríamos uma vagina assim, de frente, e a possibilidade nos extasiava, como quando se está para fazer algo que nos vai mudar para sempre.

As horas passavam, a mãe suava, Tia Encarna e O Brilho dormiam numa poltrona que lhes servia de cama. Nós, as rainhas magas, chegamos com tudo o que tínhamos: ouro, mirra e incenso, mas também pau-santo para afugentar os maus pensamentos, e maconha para que as crianças fossem divertidas, e licores para que os duendes baixassem, e santinhos da Defunta Correa para nunca faltar leite e de São Caetano para nunca faltar trabalho, para que nunca seja interrompida a vida que é bem vivida. 

A exuberância de nossa fé se condensava no ar como a fumaça de um cassino clandestino. Algumas de nós cantávamos, outras dizíamos aquilo que em geral se diz a uma mãe, que empurrasse, força, que se esforçasse mais, enquanto enxugávamos sua testa. Nos intervalos de dor, ela nos agradecia, a todas as rainhas magas, por estarmos ali, por termos seguido a estrela. De um canto, O Brilho dos Olhos olhava tranquilo, e isso nos tranquilizava porque sabíamos que era clarividente.

Quando a cabeça do primeiro bebê estava para sair e as mãos de Nadina se preparavam para receber a vida, pensei de chofre que não deviam nascer. Gostaria de dizer tudo ao contrário daquilo que minhas amigas diziam: eu não queria que nascessem. O que desejava no fundo era que a mãe os conservasse dentro de si para sempre, para que eles não tivessem que sobrecarregá-la a vida toda. Queria lhes dizer que nada era seguro aqui, que os filhos das prostitutas não estavam a salvo. Enquanto todas faziam força pelo nascimento, eu pedia por dentro que o tempo se detivesse. No entanto, as crianças já vinham deslizando pelo corredor da vida, e a apropriação delas por parte da cultura já era inevitável. Independentemente do que eu desejasse, a cultura podia tudo. Mesmo que aqui teus pais tentem te assassinar, mesmo que os amigos te esqueçam, mesmo que os homens apontem e disparem. 

De sua poltrona, com O Brilho nos braços, Tia Encarna chorava. “Também te pari”, parecia sussurrar à sua cria, “só que por um caminho de galhos e de sangue. Quando te trouxe ao mundo, eu também gritei de dor. Parada diante da morte, troquei minha memória por tua felicidade, minha saúde pela tua. E os deuses escutaram e me disseram que você era meu. E te peguei nos braços e te amamentei com o rio oleoso que brotava do meu peito, e o mar chegou à cidade e trouxe consigo peixes nunca vistos que cantavam para te ninar canções salgadas como lágrimas, e a lua baixou até bem pertinho, e eu agradeci ao vento porque o sentia no teu rosto e agradeci à areia porque era o quintal de nossa casa, e também chegaram as rainhas magas com suas bugigangas de presentes, assustadas, com os dentes cantando de medo na boca. Vieste ao mundo por um corredor de sangue e de gelo, o alento se tornava neve no ar, e tu, rei do inverno, ali onde vão morrer todas as coisas, fizestes renascer minha carne que estava completamente morta, como um punhado de hera seca. Teu nascimento não é menor que este. E eu não sou menos tua mãe por não ter entre as pernas uma ferida aberta.”

E Tia Encarna chorava e chorava, como se tivesse culpa por não ter sido mãe daquele modo, como estava ocorrendo no quarto ao lado. Como se a magoasse o fato de Laura estar parindo e o parto fosse como eram todos os partos. Ou talvez fossem ciúmes, porque não havíamos nos esquecido um só segundo de olhar para ela, porque ali ao lado algumas encorajavam a vida. E aquilo nunca terminaria.

Mas para Tia Encarna todas as travestis éramos estéreis como em Yerma. Todas estávamos ressecadas como um canal de irrigação esquecido; a única fértil, a única para quem alguém sussurrou aqueles dois passarinhos no ventre, era Laura. E, no breve instante do seu raciocínio, Laura era a inimiga. Mas o que podemos saber a respeito, nós que estávamos encantadas com a menina e o menino que vimos aparecer nos braços de Nadina, que chorava como uma noiva no altar, enquanto Laura, lá da banheira cheia d’água onde dera à luz, esgotada pela dor e pelo acontecimento, dizia que era o dia mais feliz de sua vida porque estávamos todas ali.

Os restos do nascimento jaziam aos pés da banheira: as tripas e o sangue.

– Mas que bela placenta – disse uma de nós, e todas arrebentamos em gargalhadas que despertaram Tia Encarna lá do seu devaneio.

– Já nasceram? – perguntou e, então, aproximou-se com seu menino nos braços e falou para a mãe, com os olhos afogados em lágrimas, que ambos tinham nascido, um casalzinho perfeito. – Agora você vai ter com quem brincar – falou para o filho e voltou para o sofá, e todas nós nos calamos.

Nadina ficou para cuidar de Laura e suas duas crias durante três meses. De dia, era um correto enfermeiro; de noite, convertia-se numa belezura de um metro e oitenta que deixava perturbados os transeuntes que passavam por ela.

As primeiras semanas foram tranquilas. Nadina se encarregava de tudo, a mãe se recuperava pouco a pouco da loucura do parto, as travestis iam para o trabalho e deixavam a casa em silêncio. No começo do segundo mês, nasceu entre Laura e Nadina o romance mais natural e respeitoso que nossos olhos já tinham visto. Nadina se meteu no coração da mãe pela via sanguínea, toda vez que aparecia para ela vestida de enfermeiro: alto, silencioso, um homem capaz de falar em três idiomas com uma parcimônia de onnagata, um ator encarnando papel feminino. Ficou vivendo com a gente como quem não quer nada com a coisa. Laura tinha se enamorado do enfermeiro, mas também da companheira de estrada, que vinha no mesmo corpo.

Acostumada aos homens, à doentia paixão pelas braguilhas, Nadina de início parecia se negar àquele sentimento que se aninhava em sua garganta e na boca do estômago. O que se pode fazer com a certeza de que o olhar do outro diz a mesma coisa que o nosso, que é possível por um momento amar alguém, que é possível se salvar, que a felicidade existe? Como alguém como Nadina poderia saber, alguém que recebera amor somente de machos espancadores, que a ternura e a suavidade de um amor como que Laura oferecia podiam existir? Contudo, a presença de Laura e dos bebês foi mais eloquente, e o improvisado José que chegou à vida deles se entregou por completo a eles, e tudo mudou para melhor.

Laura não voltou ao Parque. Havia economizado para isso, para ficar em casa com seus filhos, a quem batizou Nereo e Margarita. Ambos receberam o nome de Nadina, que os reconheceu diante da lei como pai. Nadina tampouco voltou ao Parque. Dedicou-se a cuidar de velhos moribundos, como enfermeiro. Pelas noites, aquelas duas mulheres deitavam-se na cama com os bebês no meio e assistiam à novela e falavam de nós, que tínhamos ficado no Parque, e diziam: amanhã vamos convidá-las para jantar.

Nenhuma das que acreditávamos conhecer Nadina e saber tudo das travestis tínhamos palavras para sua história com Laura. Não queríamos nem imaginar como tinham relações, só de pensar em uma vagina ficávamos enjoadas, sentindo calafrios de rejeição. Porém elas se amavam todas as noites; não sabíamos o segredo, mas sabíamos que era assim, pelo saudável aspecto que exibiam na cútis e no cabelo.

Com três meses, Nadina decidiu levar a família para a casa de sua falecida mãe, em Unquillo, a cerca de quarenta quilômetros da cidade. E lá se foram, para começar de novo nas serras que rodeavam a capital. Montaram uma loja de material de limpeza. De tanto em tanto, Laura aparecia no Parque com sua mochila cheia de comida, mas não ia mais para vender, e sim para dividir com a gente. Ainda que tivesse perdido o hábito de meter a mão na nossa virilha, estava mais expansiva que nunca, como se o amor tivesse lhe retirado as carcaças de resistência do mundo, porque seus filhos cresciam fortes e saudáveis.