[N.67 | 2023]

O que não estou escrevendo

Marina F. Gonçalves

Não estou escrevendo sobre as coisas incríveis que observo no desenvolvimento da linguagem e da comunicação com o mundo do Camilo. Que antes todas as peças de roupas eram blusas, agora só as meias são blusas e o restante é roupa. Se falo: vamos colocar uma meia? Ele abre a gaveta, pega as meias, olha para mim e diz: blusa. Um dia, abri a janela de seu quarto de manhã e a lua ainda estava no céu. Ele apontou e falou: bola. Houve a época em que ele acordava de manhã e sempre repetia: pé, bibi, papai, mamãe, sapato. Não sei se revendo o que havia aprendido ou tentando nomear algo que ainda não sabia expressar com o vocabulário que tinha. Às vezes, fica nervoso porque não conseguimos entender o que ele está tentando dizer. Não sei como explicar a ele que essa situação perdura durante a vida, mesmo quando já dominamos a sintaxe da língua.

Não estou escrevendo sobre minhas reminiscências. Sinto que já processei muito. Moí, duas vezes. Piquei, triturei, transformei em pó. Muitos anos de psicanálise. Pratiquei ioga também. Fiz um recolhimento emocional voluntário após uma desilusão amorosa e uma crise existencial aos 31 anos. Mudei para uma república de adultos com jardim. Eu nunca havia morado numa casa. Comprei livros de receitas. Li Guerra e Paz. Escrevi os relatos da melancolia. Voltei a morar sozinha. Fiz um mestrado, abri uma loja de sapatos, tive mais um par de desilusões, encontrei o amor no Tinder. Foi ironia: eu, que tanto rejeitava essa tecnologia, conheci o homem com o qual quis ter um filho na vitrine virtual de gente. Me senti um produto do tempo em que vivo. 

Minha psicanalista, que morreu enquanto eu estava grávida, obviamente não concordaria muito com isso – que já processei demais. Tantas coisas aconteceram, e sempre encontramos outros significados sobre o já vivido. O que acontece é que eu, às vezes, canso dessa minha ruminação mental constante. Quero percorrer os caminhos à frente. Sinto que já perdi muito tempo escrutinando a mim mesma, experimentando o mundo. Mas por que a sensação de perda? Colecionei muitas experiências, amigos, amores, dissabores, decepções, outras gentes, outros sabores, outros sons. Dentro da mesma instituição, mudei de área algumas vezes, me aventurei por outros assuntos. Quero fazer o doutorado. Achei um tema que, pelo menos para o momento, me motiva a estudar a fundo. Gosto de estudar. Gosto de mudar de assunto, mas sinto falta de ter um objeto de trabalho ou estudo que me seja muito caro, que me traga satisfação. Talvez por ter casado com um cara que tem um foco de pesquisa muito bem definido. Talvez eu inveje esse foco, assim como ele inveja minha disposição de tentar quase tudo.

Só que não quero escrever sobre isso. Sinto que eu gostaria de escrever é sobre o que estou vivendo agora, meu filho, minha experiência como mãe, a banalidade do cotidiano. Outro dia, ouvi a música “Como nossos pais”, na voz de Elis, vinda do banheiro dos vizinhos. Aqui em Brasília, os prédios têm essa particularidade: os banheiros não têm janela para o exterior, e sim para um vão do prédio. O que dá uma intimidade estranha entre vizinhos desconhecidos: a conversa das crianças no banho, o cheiro de café, do baseado, do camarão, o grito no gol do Flamengo, o gemido do gozo. Nem sempre conheço os rostos por trás dos cheiros e das vozes. Nunca tinha ouvido algum vizinho ouvir música às seis da manhã aqui nesse prédio. Parece que é da casa dos pais de Davi e Marina. Pensei que eles deveriam estar transando e colocaram a música para abafar os ruídos do sexo: tanto para fora, quanto para dentro de casa. Muito justo. Nem sei como alguém que tem mais de um filho acha tempo para transar.

Não sei se quero escrever sobre a crueza da maternidade real. Ainda bem que muitas mulheres falam sobre isso atualmente. Nessa questão, reconheço meu privilégio. Tenho uma mãe que não romantizou esse lugar nem abdicou da própria vida. Então, aqui não tem culpa por querer continuar existindo como mulher. Tenho um companheiro parceiro. Temos rede de apoio. Ainda acho absurdo e mágico, coisa de realismo fantástico, uma união de células virar um bebê dentro da minha barriga. Um bicho, vivo, ali, dentro de mim. E ainda sai inteirinho pela vagina. Conjugamos a mesma gramática dos outros seres vivos. Nosso corpo dispara uma cascata de reações fisiológicas à nossa revelia, desafia nossa racionalidade. Da inveja da galinha, por não botar um ovo, ao encantamento com a gestação, depois inveja dos marsupiais, pois já vêm equipados com sling, e demais mamíferos em geral, já que os outros filhotes nascem com dente, praticamente andando, com menos dependência das mães. Será que o potro morde a teta da égua? Gosto de pensar sobre esse assombro biológico, de ser bicho, sair leite da minha teta e, ao mesmo tempo, estar sentada na frente de um computador, participando de uma reunião, pensando na potência das mulheres. Os homens nunca experimentarão nada nem remotamente parecido.