[N. 29 | 2023]

O segundo nome de nenê

Marina Farias

as mãos trêmulas de elza seguraram o bebê que acabara de nascer. antes que o corpinho lambuzado de sangue e vérnix encostasse o chão de terra batida, ela aparou a criança e a encaixou no meio dos seios. o choro silencioso da mãe, entrecortado pelo choro recém-nascido da filha, ambos abafados pelos trovões que anunciavam a chuva depois de cinco anos de estiagem, não acordaram ninguém e as duas permaneceram a sós, como haveria de ser durante o tempo de uma vida. dos mamilos escuros de elza, brotava o líquido translúcido que alimentaria a vida insistente que teimava em chegar. elza estava assustada e o susto vinha desde aproximadamente dez luas cheias. o nascimento da menina, em casa, no meio de uma madrugada de fevereiro do ano de 1990, tinha sido um desfecho ainda mais inesperado para essa espera que não fora planejada. cerca de oito meses antes, adelmo havia prometido voltar rápido de são paulo, tão logo conseguisse juntar algum dinheiro para que começassem a construir a casinha de cimento no pedaço de terra que elza herdara de sua mãe. ainda em vida, dona maria decidiu dividir seu sítio com as três filhas: rosa, elza e domingas. ela sabia que aquela terra sempre fora dela, ali nasceu, trabalhou, teve suas meninas, envelheceu. mas precisou esperar quase a vida toda para ter em mãos um documento que dizia que ela era assentada da reforma agrária do estado da paraíba. que aquele pedaço de chão era dela mesmo, fato agora confirmado pelo estado, esse com ‘e’ maiúsculo nos papéis oficiais e presença quase inexistente na vida daquelas mulheres.
adelmo não voltou, nem dava notícias há muitos dias, semanas, meses inteiros de sumiço. e a barriga de elza cresceu junto com a preocupação de como iria criar aquela criança ali, sozinha, tendo de trabalhar na roça, cuidar dos bichos, sobreviver à seca que não se apaziguava com as chuvas cada vez menos frequentes. não tardou para que decidisse ir atrás do pai da menina, que já contava quase cinco meses e ainda não tinha nome. era chamada apenas de nenê pela mãe e sempre sorria banguela ao ouvir a pronúncia carinhosa das duas sílabas que a identificavam como gente. nenê havia se tornado um xodó para elza, um respiro de vida, um encantamento. tanto que a mulher não conseguia escolher um nome para a menina porque achava que nenhum chegava perto da boniteza de sua cria, nenhum dava conta de dizer em palavras o transbordamento que acontecia no peito de elza depois que nenê chegou.

cansada da espera pelas promessas que não vingaram, elza encheu a mala antiga com suas poucas mudas de roupas e todas as de nenê, retirou da caixa de sapato guardada em cima do armário de ferro as economias dos últimos anos, comprou uma passagem de ônibus para a noite seguinte, pediu a benção à mãe e partiu. três dias depois, desceu na rodoviária do tietê, obstinada a encontrar um rumo na cidade que parecia engolir quem nela chegava. era tanta novidade naquele mar de prédios e corpos que elza rapidamente se esqueceu que tinha ido parar ali à procura de adelmo, e a lembrança daquele homem que havia lhe prometido o mundo se esvaiu feito a garoa que gelava seu corpo acostumado à quentura do cariri. sem muita demora, a vida deu seu jeito de achar outro rumo para a existência de elza e nenê, e as duas se aprumaram como conseguiram. primeiro, morando de favor na casa de uma conhecida da tia de dona maria no bairro de perus. dias difíceis elza precisou enfrentar, até que, depois de muito caminhar com nenê escanchada em seus quadris, as duas acharam pouso no bairro do pari, às margens do rio tietê. ali, elza conseguiu emprego numa fábrica de roupas íntimas, aprendeu a costurar, descobriu que tinha jeito pro ofício e os anos se passaram, atravessados por muito trabalho, pouco dinheiro, mas uma modesta felicidade que fazia contrastar o sorriso branco, agora cheio de dentes, com a pele escura de nenê.

no universo que criou para sobreviver junto com a filha, elza abdicou de alguns dos contratos sociais vigentes e simplesmente decidiu que não registraria a menina em cartório. conseguiu manter esse acordo consigo mesma até o momento em que, questionada pela própria nenê, se deu conta de que era hora de a menina começar a frequentar a escola. com oito anos, nenê já havia aprendido a ler e escrever sozinha, graças à enorme curiosidade que tinha com cada gibi, livro, revista, jornal ou qualquer papel escrito que lhe chegasse às vistas. cada toco de lápis ou caneta bic estourada viravam verdadeiros tesouros nas mãos da menina que, torcendo a língua no canto da boca, começara a desenhar os primeiros rascunhos de vogais, consoantes, frases, versos. um amontoado de palavras que lhe vinham à mente e não cabiam dentro de si. nenê tinha lido num papel velho, pregado num poste da rua perto de casa, a seguinte frase “tem coisa que só sai da gente por escrito”. e, de alguma maneira, a menina levou aquilo como um lema a ser perseguido incansavelmente. essa autonomia era apenas um primeiro sinal da sagacidade de quem nasce já sabendo o caminho a ser trilhado, respeitando as encruzilhadas e demonstrando a força torrencial do trovão que anunciara a sua chegada. numa conversa com a filha, elza explicou, não sem um pingo de tristeza que, para ir à escola, a criança precisaria escolher um outro nome para si. com uma desenvoltura que surpreendeu a mãe, nenê disse que já pensava sobre isso há algum tempo e, inclusive, já sabia o nome pelo qual gostaria de ser chamada dali em diante. contou então a história de como escolheu o seu nome. ou de como havia sido escolhida por ele.

– sabe, mainha, desde que conheci josué, aquele menino magrinho filho de dona judite sapateira que mora ali na rua santa rita, eu mais ele estamos caminhando pelas ruas aqui das redondezas para descobrir porque esse lugar tem tanta fábrica de roupa. e aí que a gente conversou com seu gaspar, o português da padaria, e descobrimos que, muitos anos antes, as redondezas daqui de onde a gente vive foram uma favela. a senhora sabe o que é favela, minha mãe?

– nenê, tu tá cheia de história menina… favela é lugar onde os pobres ficam abandonados, vivendo num miserê danado, jogados à própria sorte. – respondeu elza, sem muita paciência pras invenciones da menina, que sempre ia longe demais, tanto nas caminhadas com josué, quanto nas perguntas de sua cabeça inquieta. nenê era esse furacão de questionamento que estava sempre além do que a mãe conhecia e sabia responder.

– pois é, mainha, parece que favela era lugar de gente pobre viver, às vezes sem água, muitas vezes sem comida, mas quase sempre com muitos sonhos. essa favela que seu gaspar contou pra gente foi uma das primeiras favelas daqui de são paulo, foi bem grandona, durou foi muitos anos, mas destruíram pra construir o estádio e esse tanto de fábrica de tecido e loja de roupa, inclusive a que a senhora trabalha, viu? a senhora trabalha em cima da casa de um monte de gente pobre que saiu daqui sem saber pra onde ir. – e riu da cara de brava da mãe com a sua provocação.

– menina, não me aperreie com suas lorotas. quando cheguei aqui, não tinha favela nenhuma, eu não vivo em cima da cabeça de seu ninguém. deixe de história e venha jantar.

– mas, minha mãe, espere eu terminar minha história? é que nessa favela, hoje soterrada por aquele estádio de futebol grandão, sabe? nessa favela, de nome canindé, viveu uma mulher que do mesmo jeitinho que eu, gostava de livro. e que nem eu, ela também usava cotoco de lápis e papel velho pra escrever um pouco disso que as pessoas dizem que é a vida. segundo dona paloma, da fábrica de roupa lá do fim da rua cachoeira, essa mulher era preta da cor do carvão, tinha porte e elegância de rainha. ela escreveu foi muitos livros, viajou o mundo, ficou famosa com as letras que desenhou nos pedaços de papel que encontrava no lixão. ela escreveu foi livro, minha mãe. livro! depois que eu fiquei sabendo que essa mulher catava lixo e escrevia poesia, veja a senhora como pode alguém achar beleza no resto dos outros? como pode alguém fazer dessa vida de abandono um treco bonito que emociona quem lê? depois que eu soube disso, decidi que meu nome tava escolhido. eu quero ter o mesmo nome dessa mulher, mainha, que essa mulher era escura que nem a gente, ela era parecida demais com nós, mainha. e aí quem sabe não posso ser que nem ela quando for crescida e escrever um livro bonito contando da nossa vida, um livro que chegue lá na paraíba, no sítio, e encha minha vó e minhas tias de orgulho? um livro que faça o nosso caminho de volta. só penso no tamanho do sonho que seria ter minhas palavras desenhadas num papel que viaje o mundo, mainha.

elza nunca se acostumara a lidar com a sensibilidade que nenê derramava sobre ela em muitos momentos desde que aprendera a falar e se comunicar de maneira tão afetuosa. árida como a terra de onde tinha vindo, sentiu os olhos arderem com as lágrimas escondidas na represa que havia dentro de si há tantos anos. precisara endurecer o coração como barro seco para sobreviver. incapaz de aceitar a emoção que embargaria a sua voz nos próximos segundos daquela conversa, perguntou ligeiro, enquanto virava o rosto com a desculpa de mexer a panela de sopa da janta.

– e que nome essa mulher tinha, nenê? que nome era esse?

nenê, sem demorar mais do que um segundo, respondeu com um sorriso na voz, marca inconfundível de sua satisfação. sorriso que transbordava na boca inteira e subia até os olhos impregnados de futuro:

– eu quero me chamar carolina, mainha. – e repetiu pausadamente as quatros sílabas, que agora substituiríam o seu nome-afeto, escolhido pela mãe, pelo nome-coragem escolhido por si mesma: ca-ro-li-na.