Palíndromo
(para mamãe)
mãe, em cor de rosa.
não há outra cor para as mães
que de repente se tornam filhas nossas.
quem devemos pôr no colo e cantar,
baixinho, em tom de segredo:
não há amor
pra dizer do seu e do meu.
te dou banho e te seco
sem me dar conta de que te vejo
mais nua do que está, nua como és,
fragilmente.
mesmo sem que me admitas, admite-me
é nosso berço, esse.
Aborto
Terça-feira, dia 15 de setembro. A data escoa junto aos coágulos?
Um fluido vermelho intenso feito de luz comunica à cinzenta constelação pixel sua lenta pulsação. Manchinha de vida se aperta na bolsinha rota.
Dias languidamente horizontais. Lágrimas vertiginosamente verticais.
Choro estrangeiro, sangue estrangeiro, estrangeira solitude.
Faxina interna. Pelo ralo o que tão fugazmente foi ensinado? Peitos eloquentes, mamilos rijos, serenidade embriagante.
Olhar para o teto e exercitar superficialidade e leveza como contrapesos da visceralidade dilacerante.
Coração mais rápido que o corpo, que pede ao coração: guarde-se, guarde-me, guarde-se, guarde-me. Agora estamos a sós novamente.
Desmame
(meu e do Gonçalo)
Hoje, durante a quarentena, nesse tempo tão nosso, mais do que de ninguém, encerramos nosso ciclo de amor líquido branco ralo doce, não para ingressar, mas para permanecer no outro, de amor líquido sólido doce salgado ralo denso azedinho manso bravo firme nunca frouxo gostoso belo belo belo maternal incondicional eterno amor. Seu olhar nessa despedida era o de quem me dizia já estou pronto mamãe, já não mamo mais de dia, vou gostar do seu abraço a noite inteira, quem não gosta?, vou aprender cada dia a conquistar meu quinhão de mundo. Há dias tento te dizer que é isso, que você é grande, que a lua é da noite, que à noite os bichos, as plantas, papai, Martim, mamãe e todo mundo dormem. Você fingia não me ouvir, mas, findado o banho de leite, já de pijaminha, você me disse: papai. Entendeu, né, filhinho? Primeira noite de muito choro, não era isso que eu quis dizer, papai, eu quero mamaaaaaãe, com aquele negócio de fazer dormir, que você, com tantas palavrinhas já na língua, não chegou a aprender. Segunda noite de coragem – sua e minha –, como eu escrevi para o Martim: última mamada da vida? Nos encontraremos em todo o resto, meu filhinho.