[N. 150 | 2025]

Peitos e ovos [fragmento]

Mieko Kawakami

Tomamos cerveja e comemos os vários petiscos servidos na mesa. Tudo estava uma delícia, mas Yusa elogiou muito minha omelete em estilo de Kansai. Ela me entregou uma folha grande do bloco de post-it que pegara de algum lugar e me pediu a receita. Escrevi: quatro ovos, meia colher de sopa de shirodashi, uma pitada de sal, três gotas de shoyu e cebolinha (a gosto), e lhe entreguei. Yusa colou a folha na porta da geladeira e a observou, satisfeita, por um tempo. E, virando-se em minha direção, disse, sorrindo:

— Kura.

Quando me virei, vi uma menininha em frente à porta de papel corrediça aberta pela metade.

— Venha, Kura.

Kura deu alguns passinhos até onde estava a mãe e estendeu os braços. Yusa a ergueu no ar. Seu cabelo parecia macio, o rabinho de cavalo no topo da cabeça preso por um elástico estava meio torto, e ela vestia uma camiseta de corrida azul-celeste, pequena e fina. Parecia ter menos de quatro anos, que era sua idade. Seus lábios tinham uma cor rosada, como se o sangue estivesse concentrado naquele local, as bochechas eram cheinhas, e eu olhei fixamente seu rosto. Eu era próxima de Midoriko quando ela estava nessa idade, mas parecia que, pela primeira vez, estava tendo contato com uma criança pequena tão de perto. Kura ficou no colo da mãe por um tempo, meio sonolenta, mas depois, pedindo água, desceu e foi andando na direção da pia da cozinha. Trouxe um copinho amarelo de plástico, e Yusa o encheu. Nós duas a observamos tomar toda a água do copo, em silêncio. Ela levantou o queixo devagar e, ao terminar de beber, expirou o ar com uma fisionomia séria. Eu e Yusa sorrimos diante do jeito gracioso da criança.

— Kura, essa é Natsume. É amiga da mamãe.

— Olá, Kura. Prazer.

Kura parecia não estranhar as pessoas e, quando aproximei a colher com a omelete para lhe oferecer, ela abriu a boquinha e comeu com naturalidade. Sentando-se no meu colo em seguida, ela pediu queijo. Quando removi a embalagem, ela voltou a abrir a boquinha. Depois me puxou pela mão até o quarto onde o futon estava estendido no chão e, mobilizando todos os brinquedos que tinha, começou a falar sobre cada um deles. Yusa veio trazer minha cerveja, e brincamos juntas com a bonequinha de Rika de Sylvanian Families, roupas das personagens do desenho Purikyua e outros brinquedos.

As mãos e os dedos de Kura eram assustadoramente pequenos. As unhas na ponta dos dedos dela eram ainda menores, transparentes e delicadas, como se fossem micro-organismos recém-­nascidos do mar. Enquanto eu as observava, Kura estendeu os braços para mim, sorrindo, e se aproximou, como se quisesse me abraçar. Fiquei surpresa, sem saber o que fazer, mas também a abracei, como se a carregasse nos braços. Fui envolvida por uma sensação tão boa que fiquei tonta. Seu corpo era macio e pequenino. Um cheiro emanava de seu pescoço, uma memória – que lembrava roupa lavada que secou sob o sol, soalheiro de primavera, barriga quente de filhote de cachorro, brilho do asfalto após uma chuva de verão, a sensação úmida de lama morna, tudo isso misturado. Abraçando Kura com força, respirei fundo várias vezes, inspirando o ar pelo nariz. A cada vez que inspirava, sentia meu corpo ficar cada vez mais flácido e meu couro cabeludo parecia formigar.

Kura ficou quietinha nos meus braços por um tempo, mas depois se afastou, atraída por um livro de colorir. Yusa e eu folheamos o álbum de fotos de quando Kura era bebê. Ela era um bebê rechonchudo e estava linda em todas as fotografias. A Yusa de cabelo raspado também aparecia em alguns registros. Falei que a tinha visto daquele jeito na TV, e ela assentiu, alisando a cabeça.

 
— Quero muito ter um filho — falei espontaneamente, apesar de não ter planejado comentar isso com Yusa.

— É mesmo? — perguntou, balançando a cabeça e me encarando. — Você nunca me disse isso.

— Verdade. Mas nem parceiro eu tenho. Não tenho nada.

— Ah, é?

— Além do mais, nem sexo eu consigo fazer.

— Puxa vida! — Yusa balançou a cabeça algumas vezes. — Você quer dizer fisicamente ou psicologicamente?

— Acho que é psicológico. Bem, não sei direito. Não tenho vontade. Já transei com um menino que namorei muito tempo atrás. Por um tempo, quanto tempo mesmo…? Mas não deu certo. Não conseguia. Tinha vontade de morrer. — Balancei a cabeça. — Gostava dele, confiava nele, eu me esforcei à minha maneira, mas não consegui.

— Entendo — disse Yusa.

— Às vezes penso se sou mesmo uma mulher… — disse. — É claro, acho que meu corpo é de mulher. Tenho genitália feminina, seios, uma menstruação regular. Às vezes tinha vontade de tocar o menino que namorei, queria ficar perto dele. Mas, quando pensava em sexo, ou seja, tirar a roupa, abrir as pernas e deixá-lo entrar em mim, eu sentia… uma grande repulsa.

— Acho que eu te entendo — disse Yusa. — No meu caso, a aversão é pelos homens em geral.

— Aversão?

— É. Acho que tenho aversão pelo comportamento masculino. Quando me separei e não tinha mais nenhum homem em casa, fiquei muito aliviada, como se tivesse renascido. Meu ex também deve ter sentido a mesma coisa. Acho que tudo nele me deixava estressada. Ele fazia um grande barulho para mexer na geladeira, fechar a porta, ligar o micro-ondas, desligar a lâmpada… Bem, acho que muitos homens são assim. Parecem uns babacas. Ele era desajeitado, não conseguia fazer praticamente nada no dia a dia. Só fazia o mínimo para cuidar da casa e da filha desde que não precisasse sair da sua zona de conforto e, mesmo assim, fora de casa, pagava de marido e pai exemplar, vangloriava-se disso e ficava encantado com essa imagem de si mesmo. Eu pensava: “Que idiota!” E como ele não estava acostumado a receber críticas, quando ouvia uma, por menor que fosse, ficava mal-humorado e achava que os outros tinham a obrigação de melhorar seu humor. Eu ficava irritada com esse tipo de comportamento. Certo dia, pensei: “Por que estou perdendo tempo precioso da minha vida me irritando com um homem que nem é importante para mim?” E decidi largar tudo.

— Nunca morei com um homem. Então é assim?

— Ouvindo minhas reclamações, pode parecer que sou exigente demais, implicando com detalhes bobos, mas não é isso. Bem ou mal, morar com um estranho é basicamente um processo em que se chocam os detalhes que cada parte cultivou ao longo da vida, e para que a vida a dois se torne viável, sempre é necessário um amortecedor chamado confiança. Ou você perde a cabeça de tão apaixonado que está. Sem um ou outro, só resta a repulsa. No nosso caso, eu e meu ex chegamos a essa fase em bem pouco tempo.

— Como se cultiva a confiança com um homem? — perguntei.

— Se eu fosse capaz de te explicar isso, não teria me separado, não acha? — respondeu ela rindo alto. — Bem, brincadeiras à parte, de qualquer forma acho que eu teria voltado a ficar sozinha. Afinal, não preciso de homem nenhum. Além disso, uma mulher nunca consegue fazer com que um homem compreenda o que é de fato importante para ela, de jeito nenhum. É sério. Quando me ouvem falando isso, algumas pessoas dizem: “Como você é intolerante, uma pobre coitada que não conhece o amor! Não generalize, pois nem todos os homens são assim.” Mas eu garanto: um homem nunca vai compreender o que é importante para uma mulher. Isso é óbvio.

— O que é importante para uma mulher? — indaguei.

— O quão doloroso é ser mulher — respondeu Yusa. — Quando digo isso, alguns homens afirmam: “Certo, entendi, só que é doloroso ser homem também.” Mas quem disse que não é doloroso ser homem? Eles devem ter suas dores, já que estão vivos. A questão é: quem provoca essa dor? Como essa dor pode ser eliminada? De quem é a culpa de o homem sofrer?

Yusa suspirou.

— Pense bem. Desde que nascem, eles têm regalias só por serem homens e nem percebem isso. A mãe faz tudo por eles, aprendem que são melhores do que as mulheres só porque têm um pinto e que podem tratar as mulheres como objetos. Quando saem de casa, se veem rodeados de mulheres peladas e têm à disposição, à sua volta, um sistema funcionando a todo vapor que trata seus pintos com hospitalidade. E quem sustenta todo esse sistema? Claro, as mulheres. E, no fim das contas, culpam as mulheres pela dor deles: “Não me dou bem com as mulheres, não tenho dinheiro, estou sem emprego, não tenho sucesso na vida…”’ Acham que a culpa disso tudo é da mulher. Mesmo fazendo uma estimativa bem ponderada, quem é responsável por mais da metade da dor das mulheres? São eles, os homens, não? Como é que homens e mulheres podem se entender desse jeito? É estruturalmente impossível.

Yusa riu, mostrando-se estupefata.

— Os piores são os tipos como meu ex. — Ela balançou a cabeça. — Homens que se consideram diferentes dos demais. “Eu compreendo o sofrimento das mulheres, respeito as mulheres, compreendo todos os problemas que enfrentam e escrevo artigos acadêmicos sobre isso; sei como não pisar no calo delas. Sim, minha escritora predileta é Virginia Woolf…” Vá à merda! Deixe de fazer autopropaganda e diga quantas vezes você lavou roupa, fez compras no supermercado, limpou a casa e cozinhou no mês passado.

Ri.

— Bem, mas pensando a longo prazo — retomou Yusa também aos risos —, quando as mulheres deixarem de procriar, ou for desenvolvida uma tecnologia que possibilite o parto sem o uso do corpo feminino, essa coisa de homem e mulher morarem juntos, cuidarem da casa, deve passar a ser considerada uma moda passageira de um pequeno período da história da humanidade, não é? Um dia.

Kura trouxe o livro de desenhos para colorir e o abriu sobre o tatame. Vendo-o, Yusa se inclinou para trás, em um deslumbramento exagerado:

— Que lindo! Nem consigo respirar direito! Natsume! Não olhe! Você vai morrer de tão lindo que é! — disse ela, jogando-se no chão com a mão no peito. Kura riu com satisfação ao ver a reação da mãe e voltou ao quarto dos fundos dando uma corridinha.

— Bem, voltando ao assunto… — disse Yusa, levantando-se. — Outro dia, uma mulher de cento e nove ou cento e dez anos de idade, de algum país, apareceu na TV. O apresentador perguntou: “Qual é o segredo da longevidade?”, e ela respondeu sem nenhuma hesitação: “É não ter nenhuma relação com homens.” Ela está certíssima.

Ri.