[N.90| 2023]

pequeno ensaio sobre nada

Carolina Junqueira

Eram águas castanhas as que eu via.
Caras de palha e corda nas barcaças brancas.
Velas de linhos novos, luzidios
Mas resíduos. Sobras.

Colou-se minha sombra às minhas costas:
– Que bagagem, senhora.
O Nada navegando à tua porta.

Hilda Hilst, Do desejo

I.

Caminhava na rebentação litorânea da vazante de uma lua crescente. Vivo perto de corais, e na areia plana, quando a maré desce, surgem os mais bonitos traços feitos pela água, por pequeníssimos bichos marinhos, algas agarradas em matéria calcária, bolhas de ar saltadas da espuma, correndo com o vento que invade a paisagem há dias. Tudo o que existe marca o mundo, tudo desenha, escreve, se inscreve, tudo move a terra, a água, tudo move outros corpos, abre espaço, faz um buraco, deixa um buraco, tudo tem um nome.

Eu caminhava e fotografava as marcas na areia líquida, guardando vincos, riscos, frestas. Na volta, contra o vento, andava devagar marcando eu também a areia, entre patas de cães, conchas e casco de tartaruga. Foi quando vi as marcas miúdas misturadas ao resto – os pés de uma criança.

Assombrada, dava-me conta, em pensamentos cortados e velozes: são os pés de uma criança. Ela existe. Essa criança existe. Ela marca o mundo. Ela deixa um traço.

II.

Por que escrever sobre a maternidade? Não escrever. Desistir. Escrever outra coisa. Escrever o fracasso da escrita. O fracasso do filho. Fracassar.

A demora do texto. A espera, o texto que não chega, a escrita, e além. Encontrar o texto. Encontrar a voz do texto. Colocá-lo no mundo. O mistério do texto. Habitar uma zona fronteiriça com o texto. Mar que avança e recua.

É o filho que desaparece uma vez mais ao ser nomeado. Mas, sendo nomeado, ele enfim aparece. Nesse movimento, inscreve-se o seu desenho oco. Talvez bastasse não escrever. Insisto em dar à escrita algo a mais.

Nunca houve um filho.

III.

Há anos desejo escrever o filho. Cato notas de escrita espalhadas por cadernos, diários, rabiscos. Cheguei mesmo a imaginar que escrever sobre a não-maternidade e o não-filho só poderia se dar não escrevendo. Que não escrever era o gesto – gestar o filho nenhum. Eu buscava uma forma que fosse, em si, a possibilidade de dizer. Mas dizer o quê? O que aconteceu, para que fosse dito? Nunca me interessou escrever: eu quis um filho, tentei engravidar, não consegui, atravessei o horror. Não era essa a direção do desejo, embora fosse aparentemente a única experiência relatável. Aquilo que aconteceu. Mas a escrita que eu desejava não tinha corpo, forma, concretude alguma – como o filho.

Talvez eu quisesse o filho.

Mas houve um sonho, depois que o poema chegou. Eu me descobria grávida e ficava aterrorizada, porque, estando grávida, como seguir escrevendo o livro sobre não ter engravidado?

Eu queria o livro.

IV.

Houve, então, o poema.
De forma inesperada e feroz, o poema deu corpo a alguma coisa.

V.

Sigo com a pergunta: o que aconteceu?

Naquelas tardes, o corpo suspenso à espera da concepção, as pernas ao alto e a fantasia do movimento que leva um corpo ao outro, que produz outro corpo. Nada. O que resta quando não há mínima matéria, um embrião, um coração, um rosto?

VI.

Houve um nome.
Nome abreviado, contorno do nada: O.

VII.

Volto aos pés na areia, traço da existência da criança. O que O. marca? Se tudo que existe desenha, escreve e se inscreve, o que O. deixa na areia, no cimento, na rua de terra, sobre a superfície das coisas, o que deixa na paisagem, no papel, o que O. faz no mundo?

VIII.

O caixão vazio do avô no chão da sala, o peito com enchimento do pai no velório dentro de casa, o peito aberto do gato retirada a necrose, o cometa Halley em 2061 com os pais mortos, a boneca dada pela mãe grávida. O vazio das coisas que desaparecem confrontam o vazio do que não chegou a existir.

IX.

Mater – isso, que vira mãe, vira também matéria. Aqui, virou terra, um chão de terra, virou palavra, alguns poemas. Marcar o mundo com o corpo, com o gesto, ter um corpo. Corpo-sem-filho, corpo restante, corpo marcado pelos pés de O.

X.

Recentemente, morreu-me um bicho. Lolo, o gato preto, primeiro que vi nascer, parido, lambido, amamentado, a placenta mastigada, o cordão arrancado, a meia luz no quarto, os poucos meses da primeira relação com um animal, a mãe dele, que chegou em casa, cruzou a varanda e ficou. No parto, a dança sobre a cama, os filhotes se espalhando em tecidos líquidos. Ele cresceu, olhou-me, tocamos os corpos. Depois, a cobra. E a noite em que agonizava com o peito arrebentado, os gritos para morrer, a mancha, o corpo.

O bicho, com sua existência e concretude, com seu pelo, cheiro, nascimento, morte, buraco, veneno, terra, água, nome, com a cova, o graveto fincado ao chão, a atrocidade do luto, lança-me a pergunta sobre O.: o que é isso, afinal?

O poema agora é o bicho.

XI.

A amiga me pergunta: o que você escreveria na lápide do gato?
Respondo, rápida: livre.

Pergunto-me: o que você escreveria na lápide de O.?
Respondo, assustada: livre.