[N.47 | 2023]

Pontos de Nós

Mari Polke

Mãos, gestos, linhas visíveis e invisíveis. Um ponto ligado ao outro. Tenho pensado muito sobre as mãos. Em algum momento da pandemia, uni as pintas do meu braço com uma canetinha rosa, assim como meu filho riscou a parede em um ataque de fúria. Mamãe, você está mais calma agora? Eles me perguntam. Nessas horas, acho que deveria bordar. Viver, ultimamente, me lembra o fazer de um bordado. Eu não sei bordar, arrisco algumas coisas para me acalmar, para diminuir o ritmo – do meu coração, do meu dia, dos meus pensamentos. Mas, pensando bem, essa vida bordada às vezes me parece mais um bordado que está sendo feito do lado avesso. Não vejo o resultado, só o verso. A agulha que vai e volta, deixando os pontos por trás e os espaços entre o que está sendo feito.

Não sei como está ficando do outro lado, apenas desconfio e confio. Mas é preciso continuar bordando para que a agulha não espete minhas pernas, onde, por vezes, coloco o bordado para descansar. Vida que descansa. Um respiro. Li muitas coisas bonitas neste período de pandemia. Que pausa também é movimento. Poderia ter lido muito mais. Mas não, pois a vida me chama e ela tem seis e quatro anos na maior parte do tempo.

Quando tudo ao redor para, mas dentro de você tudo rodopia, parece bem incoerente. A vida lá fora se contrai, mas aqui dentro sou tantas, tantas vidas tentando caber, transformar, expandir. E, então, o choro vem, porque a água que flui tem mais vida que a água parada e ela vai deixando linhas invisíveis no meu rosto. E eu tento esconder com minhas mãos. Mas meu filho me lembra como isso é bom. Mãe, só quero chorar mais um pouquinho (porque cortei o dedo, porque não tem pepino, porque a blusa sujou, porque o Nico quebrou meu carrinho). Chorar é a única coisa que me ajuda agora. E em seu rosto as linhas das lágrimas deixam marcas misturadas com o suor, areia e terra de suas mãos.

Uma separação. Filhos crescendo. A partida de um avô do outro lado do oceano.

Ele que nunca falava que me amava, mas disso eu sempre tive certeza. Não pude tocá-lo nem o abraçar. Pude vê-lo pela tela do celular. Como é que isso pode se tornar aceitável? Lembro-me das suas mãos. Mãos enormes, que me acordavam quando criança, fazendo massagem, puxando cada dedinho das minhas mãos e dos meus pés. E, então, penso nas mãos dos meus filhos, tão diferentes, com as unhas quadradas, a pinta no dedo mindinho. As mãos que me procuram e pedem um carinho. As mãos, as linhas e as primeiras letras no papel. Vinte e seis máscaras desenhadas durante a pandemia. E o avô que virou história para eles.

Ainda assim, surgem os espaços-convite. Um parquinho com os meninos. Um encontro com um carinha na sexta. E, dessa forma, tanto a areia quanto a excitação entram no meu apartamento de 57 metros quadrados e a vida lá fora se mistura com a vida aqui dentro. E eu continuo bordando sem poder ver como está ficando. E me lembro das mãos da minha avó me ensinando. Mãos tão delicadas. Quantas vezes essas mãos e essas pernas foram espetadas pela agulha dourada?

A agulha que borda a vida no tecido do avesso é a mesma que fura o balão verde do meu filho em um momento em que me descontrolo. De fome, exaustão, raiva, carência, saudade. É como se, nesse ponto do bordado, eu puxasse um pouco mais firme a linha e uma ruga se formasse no tecido. Quando um ponto é mais firme e o tecido chega a enrugar, todo o bordado é repuxado. Tudo muda de lugar. Quantas rugas ganhamos durante este ano e meio de pandemia?

Mamãe, quando você conheceu o papai, você sentiu algo na sua barriga? E quando foi que vocês deixaram de ser um casal? E ele nunca mais vai morar aqui neste apartamento? Teremos sempre duas casas? Eu não gosto das palavras madrasta e padrasto. Eles também serão nossos papais e mamães? Mas ela não pode dormir na cama do papai, por causa do corona. Então, o Emílio é tipo o seu padrasto? Achei que ele fosse como um tio. E, assim, no meio de um tapete com lego espalhado, entre um lockdown e outro, meus filhos também vão fazendo seus próprios bordados. E eu me assusto toda vez que vou cortar suas unhas, pois vejo o tempo se materializando em suas mãos.

“Mamãe, sabe quem eu mais amo? Nossa família. Eu, o Nico, você e o papai. Mas, de todo mundo, quem eu amo mais e mais, sou eu mesmo” – escuto isso e, nesse momento, é como se eu desse uma espiadinha do outro lado do tecido e percebesse que o bordado está ficando sim bastante fascinante.