O tema da maternidade é central para a psicanálise, seja pela chave edípica, na qual a tragédia de Sófocles1 serve de inspiração para Freud, seja pelo aporte que psicanalistas como Melanie Klein trouxeram sobre a crucialidade das relações precoces.
O mito explorado por Sófocles se presta a ilustrar as ideias do inventor da psicanálise porque trata da busca da identidade, de respostas sobre nossa origem e sobre quem somos. Édipo não sabe que é filho de Laio e de Jocasta e, portanto, não sabe que matou inadvertidamente o próprio pai ou que desposou e teve filhos com a própria mãe. Diante da maldição que se abate sobre Tebas – maldição que pode ser comparada ao sintoma psíquico, cuja causa nos escapa, tanto quanto nos concerne –, ele parte em busca da verdade sobre quem assassinou o rei para descobrir, numa reviravolta surpreendente, que foi ele mesmo. Roteiro genial, repetido à exaustão na literatura, representa nossa incessante busca por nossas origens e, ao mesmo tempo, o temor em descobri-las. O que parecia tão enigmático e inalcançável se faz autoevidente, pois, no fim das contas, perseguimos incessantemente a nós mesmos.
Édipo não tem como fugir da sina humana de ser, em última instância, o responsável pela própria existência e por seus erros. Daí a importância de ele se cegar ao final da peça, revelando a posição ética de quem assume seus atos, principalmente os inconscientes.
Freud chama de fase edípica o momento a partir do qual a criança começa, para grande embaraço dos pais, a se perguntar de onde vêm os bebês e para onde vamos ao morrer. Diferentemente do que imaginam os pais, não se trata de uma simples pergunta sobre óvulos e espermatozoides, cuja resposta só aponta para a origem do organismo. A pergunta que começamos a nos fazer por volta dos três anos de idade e que não abandonamos até o fim é sobre a origem da nossa subjetividade, ainda que não consigamos formulá-la com tanta clareza. Uma vez que a origem da subjetividade se dá na relação com quem cuida, trata-se, em última instância, de uma pergunta sobre o desejo dos pais por nós. Por que eles nos tiveram, por que nos insuflaram a vida?
À curiosidade sobre a origem do organismo – pergunta pertinente, mas que encerra uma resposta bem mais objetiva – vem se somar aquela sobre a origem do desejo – de quem cuida e o nosso –, sem o qual não nos tornamos sujeitos. Dito de outra forma, a questão da fecundação/gestação serve de campo imaginário no qual se formulam a questão do desejo dos responsáveis pela nossa existência e a questão do nosso próprio desejo de viver.
Nesse processo de investigação sobre si, descobre-se a parte da mulher e a parte do homem na fecundação, ou seja, as diferenças anátomo-fisiológicas da reprodução. Embora elas não deem pistas do desejo, o reconhecimento de que emergimos de um corpo e não do outro não é sem efeito. Isso coloca a criança diante das limitações de seu próprio corpo, que não pode engendrar corpos sem a participação de outrem. Mesmo em caso de esperma doado ou barriga de aluguel, enquanto não formos clonados a reprodução requer a ação de pelo menos dois, marcando o impossível de ambos e, portanto, de todos nós. Não engendramos bebês a partir de nosso desejo onipotente. Diante do fato biológico de que uns fecundam enquanto outros gestam/parem, criamos uma mitologia coletiva e fantasias individuais para fazerem anteparo à dura realidade de que a origem do organismo não nos faz nada diferentes dos demais mamíferos, o que dá a prova de que não fomos feitos à imagem e semelhança de Deus.
O mito ocidental fundante se encontra no Livro do Gênesis. Segundo ele, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e, depois, da costela do homem criou a mulher. Susana Muszkat aponta a flagrante inversão que é supor que a mulher emergiu da barriga do homem! Mas é para isso mesmo que essas narrativas servem, para nos proteger e compensar aquilo que do Real2 nos parece excessivo ou incompreensível. A história de Adão e Eva é a narrativa coletiva que um povo encontrou para representar o fato de sairmos do corpo da mulher, buscando subvertê-lo através do mito. Jacques Lacan, inspirado nos estudos de Claude Lévi-Strauss, propõe o mito individual, aquele que cada um criará a partir da própria fantasia inconsciente para tentar se desembaraçar dos enigmáticos fatos da origem. A fantasia inconsciente que cada um cria para lidar com o que não é simbolizável tanto vai permitir que a pessoa se organize diante do Real como vai restringir sua possibilidade de enxergar a realidade. Dito de outra forma, diante do Real – do que é o impossível de saber –, criamos uma fantasia individual, e ela vai determinar, enquadrar, nossa realidade. Como na série de pinturas A condição humana (1933-45), de René Magritte, na qual as paisagens se confundem com a pintura, que por sua vez está dentro do quadro que vemos, tornando a diferenciação realidade-representação ainda mais perturbadora. Se nos detemos tentando desvendar o que é pintura e o que é paisagem no quadro, caímos na armadilha de acreditar que se trata de uma paisagem real e não de uma representação dentro da representação. Revelar nossos mitos coletivos e individuais é uma forma de questionar a crença rígida com a qual encaramos a realidade que nós mesmos representamos. O mito, portanto, funciona como enquadramento da realidade, aquele espaço restrito através do qual enxergamos a vida e que consideramos ser a realidade, negando que se trata de nossa realidade, construída a partir de experiências particulares.
O Édipo em Freud trata da assunção de nosso sexo e da escolha de objeto, ou seja, do processo com base no qual nos conformaremos em nos denominar homem ou mulher (a partir da concordância com o que se diz da nossa anatomia) e em desejar alguém do sexo oposto, nos transformando em heterossexuais. Freud aponta para uma bissexualidade de base que só a custo de muita renúncia se conforma com a heterossexualidade compulsória. A heterossexualidade será imposta pela exigência de se identificar com modelos heterossexuais, por meio de coerção e violência. Para Freud, o desenvolvimento sexual normal é aquele que desemboca na cisgeneridade e na heterossexualidade. Apesar de não condenar os homossexuais, ele entende que algo no desenvolvimento psicossexual deles não saiu como deveria.
A antropóloga Gayle Rubin afirma que o criador da psicanálise teve o mérito de descrever o “mecanismo pelo qual os sexos são divididos e alterados, de como as crianças andróginas e bissexuais são transformadas em meninos e meninas”. Segundo a autora, ao descrever o desenvolvimento heterossexual de meninos e meninas, Freud teria revelado não a forma natural do desenvolvimento psicossexual, mas o mecanismo de coerção no qual se baseia o que Rubin chamou de “sistema de sexo-gênero”. Tendo em mente responder como as mulheres se tornaram um gênero oprimido, a antropóloga aponta que a psicanálise é uma teoria que descreve acuradamente a transformação do dado orgânico (sexo biológico) em produto cultural, oferecendo caminhos simbólicos possíveis para sua satisfação. A teoria freudiana seria genial pelo que é capaz de elucidar, mas ideológica, por naturalizar o fenômeno que observa. O fracasso na empreitada de coerção heteronormativa está dado de saída, uma vez que o ser humano é justamente aquele que não tem domínio sobre a própria sexualidade, como Freud aponta nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
As posições controversas de Freud sobre o desejo feminino o fizeram enfrentar duras críticas de psicanalistas mulheres. Vale retomar um acontecimento que revela a participação das psicanalistas mulheres nesses primórdios. As famosas reuniões de quarta-feira, nas quais um seleto grupo de homens se reunia em torno de Freud para discutir suas descobertas, já contava com a presença da genial Sabina Spielrein, mas exigiu escrutínio dos participantes para que uma mulher tomasse a palavra. Margarete Hilferding, primeira mulher a palestrar para esse restrito círculo de psicanalistas, escolheu o tema da experiência de parto e (ora, vejam só!) a refutação do “instinto materno”. Como se pode ler na ata da reunião, a médica e psicanalista agradeceu a audiência e, terminada a discussão, afirmou que, a depender dos comentários sobre sua fala, os homens presentes não haviam entendido suas colocações. Essa palestra se deu em 1911, sete anos antes que as mulheres tivessem direito ao voto na Áustria, revelando o caráter ao mesmo tempo revolucionário e machista do círculo psicanalítico: capaz de aceitar mulheres em suas fileiras, mas com grande resistência a ouvir o que elas tinham a dizer.
Psicanalistas mulheres que traziam na bagagem a experiência de parto e do cuidado com seus bebês chamaram a atenção de Freud para a radicalidade das interações entre mães e bebês desde o nascimento. Os estudos de psicanalistas pioneiras como Karen Horney, Melanie Klein, Anna Freud e Helen Deutsch levaram Freud a escrever os artigos “Sexualidade feminina” e “A feminilidade”, nos quais reconhece a importância da relação entre mãe e bebê. Antes da assunção da entrada do terceiro da relação – caracterizado como o pai rival –, a mãe já teria causado enorme impacto na formação da criança. Nascimento, amamentação, desmame e cuidados primordiais realizados por ela deixariam marcas indeléveis no psiquismo. Por excesso ou por falta, se a criança se revelasse neurótica, psicótica ou perversa, a mãe estaria diretamente implicada no resultado. Ali, onde o humano se constitui como tal, haveria a mãe e sua função edificante, neurotizante, perversa ou enlouquecedora; enfim, nela se encontraria a etiologia de grande parte dos quadros de adoecimento psíquico de crianças e adultos. Afinal, eram elas que tinham total responsabilidade no cuidado com o nascituro.
A nova perspectiva metapsicológica, que pôs a mãe no epicentro, trouxe aportes importantes para a psicanálise, ao mesmo tempo que a isolou ainda mais na esfera dos cuidados e das responsabilizações com a prole. A pesquisa se voltou a partir daí à etiologia precoce das psicopatologias e à busca de formas suficientemente boas para as mães criarem seus bebês.
Lacan deu um passo a mais e propôs desimaginarizar o Édipo freudiano, esvaziando as figuras de pai, mãe e filho. A ideia é pensar o complexo como estrutura, cujos lugares de caráter lógico e necessário podem ser ocupados por diferentes sujeitos. Ao tirar a família burguesa do centro do complexo, a teoria lacaniana permite a legitimação de outras configurações familiares e mesmo de cuidadores/as em instituições. Em Lacan, encontramos a ideia de “família como resíduo”, ou seja, como aquilo do qual não se pode prescindir para criar as condições da constituição subjetiva. Trata-se, portanto, do que seria estrutural. Mas, se pensarmos nos inúmeros casos em que as condições para a constituição psíquica são oferecidas fora dos laços familiares – como nos abrigos que acolhem bebês –, teremos que repensar a continuidade do uso da palavra “família” nessa expressão. Ali onde os laços familiares faltam e, ainda assim, a constituição subjetiva pode ser promovida, a família se torna a configuração mais comum, mas um caso particular. É importante lembrar que o parentesco, associado ao “padrão-ouro de cuidados”, é tido como modelo único, quando deveria ser reconhecido como caso hegemônico, mas particular, que não recobre todas as possibilidades.
Com Lacan, o complexo de Édipo passou a ser entendido como uma sucessão de tempos lógicos, e não cronológicos, a partir dos quais um sujeito pode advir. Da experiência difusa de prazer de um corpo que se confunde com o meio para o reconhecimento de si e do outro como sujeito separados vai um longo processo entremeado por ganhos de consciência que funcionam como cortes, definindo um antes e um depois. Essa passagem diz respeito à construção de um corpo para além do organismo. A releitura lacaniana de Édipo permite uma ponte com contribuições trazidas pelos estudos de gênero, os quais também questionam fortemente a personificação do complexo freudiano, que confunde a função com a pessoa real que a exerce.
Após o chacoalhão que o feminismo e os estudos de gênero deram na sociedade, psicanalistas contemporâneos têm feito a crítica de que é preciso retomar as vertentes sociais e políticas presentes em Freud antes de seu recrudescimento biologizante normativo. Philippe van Haute e Thomas Geyskens, com base em profunda pesquisa dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, demonstraram que a primeira edição de 1905 era mais ousada que as notas acrescidas depois. A tese desses autores holandeses, cuja pesquisa é rigorosa, é de que o Édipo freudiano vai se tornando cada vez mais cisgênero, heteronormativo e desenvolvimentista. Sem mexer no corpo dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud incluiu notas de rodapé a cada nova edição, ao longo de quase vinte anos – elas modificaram tanto os rumos do original que, entre a primeira publicação e a última, não se pode afirmar que se trate exatamente da mesma tese.
Aquilo que começou como proposta revolucionária de uma bissexualidade constitutiva e de uma sexualidade infantil perverso-polimorfa, ou seja, sem objeto de satisfação definido a priori, foi dando lugar à normatividade tanto da identificação sexual – reconhecer-se homem ou mulher com base na anatomia – como da escolha de objeto – desejo heterossexual. Daí a pergunta provocadora que os autores usaram para dar título ao seu livro: Psicanálise sem Édipo?
A solução freudiana ao complexo de Édipo feminino sela o destino da mulher como mãe. Do lado do menino, a renúncia à própria mãe como objeto de desejo é fruto do medo da rivalidade paterna e do consolo de encontrar outras mulheres. Para Freud seria desejável que a esposa ocupasse um lugar “maternal” junto ao marido, aumentando com isso as chances de sucesso da empreitada matrimonial. A esposa como mãe e o marido como filho daria a ambos a compensação perfeita para as renúncias edípicas de cada um.
A menina terá um trabalho a mais na solução do complexo edípico, pois seu primeiro objeto amoroso é a mãe e ela não pode, segundo a cartilha edípica, seguir desejando mulheres. Ela deverá se voltar amorosamente para o pai, até então seu rival, para só depois, renunciando a ele, voltar-se para outros homens. Ela se volta para o pai por ele portar o pênis que a mãe não tem e que não tendo não pode dar à filha. O ressentimento pelo fato de a mãe ser castrada, não ter o pênis, levaria a filha a buscar o pai para que ele lhe dê um bebê – substituto do pênis –, assim como deu à mãe. Em seguida, renunciando a realizar esse desejo interditado com o pai, caberia à menina encontrar outro homem que o realize.
Por fim, vê-se que a solução do Édipo feminino está na maternidade, e de preferência de um filho homem, diz Freud. As outras saídas menos exitosas seriam: a inibição sexual e a neurose, devido à insatisfação da mulher por não ter pênis, e a identificação com a masculinidade, que pode levar à homossexualidade. A feminilidade “esperada” estaria ligada ao desejo de filho, o qual, com sorte, será concretizado. Nas palavras de Freud, “sua felicidade é grande se, depois disso, esse desejo de ter um bebê se concretiza na realidade; e muito especialmente assim se dá, se o bebê é um menininho que traz consigo o pênis tão profundamente desejado”.
Lacan fez uma releitura do pênis como falo, significante da falta. Longe da ideia de um órgão real que homens teriam e mulheres invejariam, o falo diz respeito ao objeto que ocupa o lugar do comutador da falta. Dessa forma, o pênis e o bebê podem ser objetos fálicos, conforme se prestem a encarnar a promessa de satisfação para o sujeito. Nesse sentido, não havendo objeto a priori para satisfazer o desejo, como já postulava Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o filho também não pode ser a única resposta para a castração que o Édipo impõe. Castração aqui entendida no sentido do limite incontornável da linguagem para responder sobre nossa existência, e não como perda de parte do corpo; portanto, referida a todos os sujeitos inseridos na linguagem, sejam homens ou mulheres.
A teoria psicanalítica prestou-se a reproduzir o discurso que reduz a mulher à mãe e, por sua vez, a mãe a um sujeito cuja sexualidade poderia se restringir ao cuidado com os filhos. As funções que o/a cuidador/a executa para que o bebê se torne sujeito foram sendo erroneamente atribuídas à genitora, bem ao gosto da ideia secular de que o instinto materno é determinante. Desse viés, que hoje entendemos como sendo de gênero, decorreram os termos usados para explicar as funções necessárias no cuidado com as crianças: “função materna” e “função paterna”. Trata-se de termos hegemônicos até hoje nos textos psicanalíticos e que revelam sua natureza ideológica e dão margem a confusão. Se as funções são materna e paterna, as demais pessoas que cuidam vão sendo escalonadas a partir dessa dupla principal, mãe e pai, que não pode faltar. Disso decorre a hierarquização entre quem cuida, com variações pontuais: a genitora, dita “mãe biológica”, isolada no topo, seguida de alguma outra parente feminina da mãe (avó materna, irmã materna), parentes femininas do pai (avó paterna, irmã paterna), seguida do genitor, a mãe adotiva, a cuidadora profissional do sexo feminino (babá, professora), demais parentes do sexo masculino, demais cuidadores do sexo masculino. Para elencar essa hierarquia caso a caso, basta responder quem é comumente acionado quando a genitora não assume a criança. Quantos pais assumem sozinhos a prole? Do outro lado, quantas mães o fazem na ausência do pai? Quanto menor a criança, maior é a tendência de optar por uma cuidadora do sexo feminino (avó, tia) para substituir a genitora.
Não podemos esquecer que a genitora “no topo” não é qualquer genitora: o paradigma dos cuidados com a prole é a mulher cisgênero, branca, heterossexual, adulta, burguesa e, de preferência, casada. As demais figuras são reconhecidas – e, por vezes, se identificam – como arremedos da mãe na comparação com esse ideal misógino, racista, elitista e biologista.
A maternidade é central no edifício psicanalítico por remeter à constituição subjetiva, na qual a mãe teria uma presença maciça, e ao estudo de psicopatologias cuja etiologia estaria nos laços primordiais. Ela também está associada à questão que Freud lamenta não ter conseguido responder até o fim de seu ensino: o que quer uma mulher? “Continente negro da psicanálise” – numa referência ao considerado “exótico” continente africano –, o feminino será um tema psicanalítico perene, a ponto de o filósofo Paul Preciado debochar de sua insistência na Jornada Internacional de Escola da Causa Freudiana de 2019. Passados mais de cem anos, o enigma do desejo humano continua a ser deslocado para a mulher, de tal forma que o próprio convite feito a Preciado para participar do evento se revela um paradoxo. Paradoxo que ele denuncia em Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas, livro que decorreu desse encontro. Como chamar uma pessoa que sabidamente repudia o jogo de poder implícito nas determinações de gênero e que se autodenomina “dissidente do sistema sexo/gênero” para falar da mulher em pleno século XXI? Não à toa sua fala foi interrompida por uma profusão de vaias e aplausos que demonstram que a psicanálise se encontra dividida em face dessas questões.
Maria Rita Kehl denuncia a dificuldade de Freud em reconhecer “que a diferença fundamental entre homens e mulheres é tão mínima que não há mistério sobre o ‘outro’ sexo a que um cavaleiro não pudesse responder indagando a si próprio”.
A munição que a psicanálise ofereceu ao maternalismo é inconteste, mas o autor que acabou por criar, inadvertidamente, um conceito fundamental para manter essa interpretação foi o Winnicott, com a “preocupação materna primária”. Mais do que simplesmente criticá-lo, considero que é possível encontrar em sua formulação insights fundamentais que nos ajudarão a separar o joio do trigo. Separar a psicanálise de seu viés maternalista requer que usemos o conceito winnicottiano de “preocupação materna primária” sob outra perspectiva.
- Na peça Édipo rei, de Sófocles, Laio e Jocasta, rei e rainha de Tebas, recebem do Oráculo de Delfos a terrível previsão de que seu filho mataria o pai e desposaria a própria mãe. Para evitar tal infortúnio, Laio manda que o bebê recém-nascido seja amarrado pelos pés e pendurado no monte Citerão para ser morto pelas feras. O pastor que recebe tal incumbência se compadece da criança e resolve poupá-la levando-a para longe, sem nunca, contudo, contar-lhe sua origem. Édipo é criado como filho por Políbio, rei de Corinto, até o Oráculo lhe revelar que ele é adotado. Inconformado com a descoberta, o herói vai embora amargurado e no caminho depara com um homem acompanhado de sua comitiva. Por uma desavença, Édipo mata esse homem sem saber que era seu pai biológico, Laio, e que com esse gesto ele cumpria a primeira parte da profecia. Em seguida, dirige-se a Tebas, cidade na qual enfrenta a Esfinge, animal mítico meio mulher, meio leão, que impõe o seguinte desafio: decifrar seu enigma ou ser morto. Ao decifrá-lo, Édipo passa a ser considerado herói e o novo rei de Tebas, apto a desposar a rainha Jocasta, sua mãe biológica. Juntos eles têm quatro filhos. Só quando uma praga se abate sobre a cidade e Édipo consulta o Oráculo é que descobre sua origem e que cumprira a profecia. Assumindo a responsabilidade por seus atos, ainda que ignorasse os fatos, ele se cega e se autoexila.
↩︎ - Lacan propõe três registros que constituem a estrutura psíquica: Real, Simbólico e Imaginário. Para abordar aquilo que em nós sempre escapa à imagem (necessária, mas ilusória) e ao simbólico (que tenta nomear o vivido), Lacan cunhou o termo “Real” (bem distinto do que entendemos por realidade). Real não é a realidade, pois essa pressupõe algo inteligível e comunicável e para Lacan é exatamente isso, a inscrição, que não alcançamos desse registro. Nesse sentido, a construção da realidade se presta a recobrir o Real. ↩︎