[N.80 | 2023]

Quatro corpos

Cris Moreira

[2008]

O meu corpo produziu, ao mesmo tempo, quatro rins, quatro pulmões, dois fígados, dois apêndices (que dizem não servir para mais nada, mas continuam sendo produzidos e exigindo uma imensa energia desse outro corpo que o produz).
Durante 28 semanas, dois corações, além do meu, bateram no meu corpo.
Eu acho uma loucura pensar que esse corpo que produziu duas pessoas ao mesmo tempo não suportou duas pessoas ao mesmo tempo.
O meu possível diagnóstico é incompetência istmo cervical. Existe uma opção menos agressiva para esse nome, que é insuficiência istmo cervical. Então, durante alguns dias, eu já me senti incompetente, em outros, insuficiente.
Dois dias após esse corpo ter produzido outros dois corpos, uma hemorragia matou um deles. Seu nome: Francisco.
Aqueles rins, baço, veias e os olhinhos mais lindos do universo foram enterrados numa sexta-feira à tarde. Novamente, me vi insuficiente.
Eu terminei esse dia com um vazio no peito, mirando uma incubadora com um corpo, o outro corpo, insistindo em sobreviver. E sobreviveu. Assim como eu.

[2015]

João pintou as unhas e foi para a escola.

Na volta, ele disse: mãe, um dia eu vou de vestido para a escola e, se alguém reclamar, eu vou dizer “o corpo é meu e eu faço o que eu quiser”.

É, filho. É seu esse corpo.

[2020]

Meu corpo em trabalho de parto às 30 semanas. Cerclagem, pré-eclampsia, hemorragia. Outro corpo prematuro nascia.
Aprendeu a mamar, ganhou peso, foi para casa.
Manoel é atento, se sentou tão rápido que não me lembro quando.
Engatinhou por pouco tempo e andou muito rápido. Uma urgência de viver.
Uma urgência que desperta as madrugadas.
Uma urgência que deixa a mãe em privação de sono.
O corpo pesa, as exigências seguem, enquanto a criança descobre o mundo.

[2021]

Manoel joga os carrinhos, olha pouco nos olhos, responde pouco aos nossos chamados (e menos ainda aos chamados do mundo como conheço, e é incrível perceber o quanto isso pode ser bonito). Uma criança que cria um universo misterioso e que, para adentrá-lo, é necessário convite. Aproveito as aberturas e respiro de outra forma em nossos encontros.

[2022]

Esse é um corpo de quem fala pouco e entende o mundo de outro modo.
Nem todos os corpos entendem o mundo do mesmo modo, aprendo.
O mundo insiste em continuar não entendendo a diversidade dos corpos.
Mas eu não sou o mundo, eu sou mãe. Uma mãe de um filho que está se criando fora das expectativas. Uma mãe em aprendizado que, em muitos momentos, não sabe o que fazer, não sabe como ouvir e ainda não sabe interpretar.
Uma mãe maternando o encantamento. Uma maternidade mais calma, mais silenciosa, mais atenta. Uma maternidade que exige um esforço maior do que a maternidade que eu já conhecia. Uma maternidade de muito afeto, de uma admiração imensurável por essa outra forma de olhar, de uma paixão pelo novo e de uma vontade de recriar o mundo para que nele caibam as pessoas. Todas as pessoas.

[2023]

Eram 18h37 de um dia do mês de março quando Manoel viu a lua crescente, bem fininha e disse: a lua.
Ao lado dela, estava Vênus, e eu tenho a sensação de que ele tentou falar algo para aquele pontinho de luz ao lado da lua, mas eu, na minha ignorância, presa às palavras prontas, não compreendi.
Eu parei o carro, desliguei o motor e olhei para aquele filete brilhante no céu.
De cá, dois corpos que se abraçavam e olhavam juntos uma lua crescente.
E eu, que sempre gostei mais de lua cheia, senti meu corpo reaprender a enxergar e a refazer os gostos.

[…]

Este corpo não está pronto, nenhum está. Agora eu sei.