[N.53 | 2023]

Raiz centrífuga: eu, o quadrado, o cosmos e o pequeno

Ursula Rösele

Estava abertamente tentando florear o começo de nossos dias com novas experiências, sucos, mudança diária do cardápio no café da manhã. Nossa religião de quarentena – porque o tempo, que vem engolindo de maneira dolente, se tornou uma espécie de presente contínuo.

Poucas vezes tive tanta dificuldade de escrever como aqui.

Mudo eu toda, mas a vida fica muda, estática.

Piegas, fui ficando insuportavelmente piegas.

Vez ou outra me recordo de um blog que fiz quando o pequeno chegou. Eu e Antônio, Antônio e eu. O site não vingou, mas nós dois somos força de vida viva.

Posterguei por tempos imensos o espaço em branco onde me propus a falar sobre essa instância pitoresca da maternidade e da pandemia.

Do que poderia dizer eu, diante do assombro de versos que não vinham, do risco de encarar no texto o grito que se esconde em tantas partes de mim?

Fiz um pequeno poema, doce, mas bobinho. O monstro, a loba que me tornei nesses quarenta anos de vida que completei em plena quarentena – tudo isso sou eu. Ansiosa por “lobar”, sacudida por desejos recônditos.

Brincamos, eu digo que ele é meu super-herói, o menino gato (personagem que ele adora). Ele diz: “só na brincadeira, né, mãe? Eu não sou super-herói”. Pergunto o motivo. “Não tenho poderes”. Tento, entre didática e patética, falar sobre poder, como corrompe, como não vale muito a pena. Ele insiste em querer alguns. Eu falo de arte. De como nela o poder se manifesta de uma maneira transcendental (com palavras bem mais exatas que aqui). Ele observa semi-atento e diz, decidido: “Queria a super velocidade de gato e o pulo do gato. E arte”.

*

– Mamãe, quero fazer cocô.

Quarta à noite: nossa intimidade compartilhada nesse universo de querências infantis. Eu me encontrava em meio a um raciocínio envolvendo leis de incentivo e incentivo fiscal para projetos culturais. As poucas feições ali, nos pequenos quadrados da videoconferência,
riam.

Fui me acostumando nesses tempos pandêmicos a dar aula, limpar cocô, ser mordida pelo cachorro e buscar o fluxo de meu raciocínio enquanto os sons internos de minha casa se misturavam ao silêncio dos inúmeros quadrados pretos. A maioria dos alunos insistia em não habilitar suas câmeras, enquanto buscávamos o resquício que poderia haver de uma experiência docente/discente. Eu, mecânica e mecanizada, em franco cotejo com as reminiscências daquela vida de outrora.

Fui me valendo do tempo ínfimo, mesmo que infinito, em sua clausura. Os afazeres, a insônia, o cansaço, o saco cheio, as saudades todas. Protelando por não saber ao certo se posso mesmo dizer das arestas não capturadas pelas instâncias imagéticas que agora nos cabem e restringem.

Eu e a tela. Eu e meu rosto refletido nela. Falando, num movimento esquizo e novo, para mim mesma. Resignando pouco a pouco, diante da inconsistência de tudo o que restou.

Saí do campo, do quadro, fui para o extra espaço.

Calei.

Minha casa no quadro, seus sons e idiossincrasias passaram a fazer parte dessa hercúlea tarefa das aulas on-line.

O intestino de Antônio veio dar as caras inúmeras vezes, bem como a fome e a impaciência de me esperar. Eu, por horas diante do computador. Ele fazia pequenas aparições diante daquela máquina retangular, cujas vozes ele não podia ouvir, pois eu usava fone. Vez
ou outra, alguém lhe sorria, enquadrado, distante. Ele, escondendo atrás de mim, oscilava entre a curiosidade pelo dispositivo e a ânsia de ter sua mãe de volta.

Pesadelos, sonhos desconexos. Em um deles, fui demitida por Ricardo Salles em um escritório que, dentre outras coisas, tinha uma esteira ergométrica na qual eu corria.

Novas formas de linguagem e temporalidade. Lapsos e silêncios em meio a minha rotinha miscigenada com dentro e fora, privado e público. Tudo ocupando o indelével espaço de um quadro, cuja imagem ora trava, ora flui.

Passei a pensar de forma recorrente e movida por raiva, anseios militantes e profunda tristeza, na solidão da mãe solo.

Quando pari, me vi renascida outra mulher. Advinda sabe-se lá de onde. Mas transformada, reinserida, reordenada.

Em múltiplos instantes maternais, espalhados dentro e fora das telas, fui acolhendo jovens, tentando manter o calor das aulas que sempre tentei dar, mesmo imersa no esfriamento desses tempos remotos e no clamor de meu pequeno, sempre ali, um pouco fora do quadro, mas vociferando para dentro dele.

Remota fui ficando eu, recolhida à significância de tudo aquilo que abundava para fora de mim.

Engorda, emagrece, faz yoga e desiste, acende vela, dança e bebe. Chora. Chorei dias e dias. Um choro meio surdo, quase calado, como o texto que eu vinha deixando de escrever.

Venho vendo que nesse “man´s, man´s world” eu uivo ensurdecida. Meu filho vê TV e eu miro no cosmos. Guardo, resguardo, por vezes esqueço de respirar.

O chão, a sala, o pó, o lixo, as patas do meu pequeno grande cão, Antônio pedindo para jogar quebra-cabeças; eu, mãe, tédio puro e sempre, sempre exausta.

O gozo, a reza, o sono, as palavras que tanto gosto, os silêncios que por vezes busco e as companhias que foram ficando sempre para esse depois que nunca chega.

O pico, esse tal de pico, a flexibilização, os corpos radioativos. Máscaras são postas, máscaras caem.

No momento do desligar das máquinas e esferas virtuais, só eu mesma soube dos vazios que restaram aqui. O pequeno vinha para o colo num gesto infante de quem sabia muito bem o que desejava.

Escrever o quê, penso eu?

Digito, apago. Por vezes me vêm frases inteiras que eu me esqueço de anotar ou mesmo abandono nos confins de uma resignação de mulher não ouvida.

Foram chegando os sábados. Eu livre, ou seja, dia de faxina, de compras, máscaras, vida estéril, álcool em gel, álcool em gel, álcool em gel.

Passei esses pouquíssimos períodos fora do trabalho, fugindo de todas as telas, calando sempre que pude e jogando para um dentro não filmado a angústia de ser uma mulher só, em meio a um pandemônio de tantos outros, enquadrados pela virtualidade que vem nos restando.

Parida, revirada, efervescente.

Por ora, dissolvida na liquidez das pequenas sutilezas do abismo desse ser mãe e mulher, num espaço-tempo que não nos cabe.