[N. 144 | 2025]

Sobre minha filha [fragmento]

Kim Hye-jin

Minha filha volta pra casa quase à meia-noite. Tão cansada que seu hálito chega a ser ácido. O panfleto está sobre a mesa, com a parte dobrada rasgada até a metade. O barulho da chuva é forte. O ar dentro de casa está pesado e úmido por causa das janelas fechadas.

Então você acha bonito ficar gritando no meio da rua, expondo a cara, o nome e tudo?, tento manter a voz baixa. Acha bonito andar com esse bando de gente igual a você, pra fazer coisas que nem crianças fariam?

Você foi lá? Quando?

Minha filha parece assustada. A cicatriz avermelhada que começa embaixo da orelha e vai até a nuca continua visível. Ouço um clique. Deve ser aquela menina trancando a porta do quarto às pressas. Clarões se acendem na minha cabeça, como se ali dentro luzes tivessem se acendido.

Eu larguei meu trabalho e minha vida para te criar. No começo fui abrindo mão de mim aos poucos até que acabei abandonando tudo para me dedicar a você de corpo e alma. Para te criar eu mesma, porque eu, só eu, podia te dar o melhor. Você tem ideia das atrocidades que tive que aguentar para te criar? Você era tudo para mim. Meu deus. Mas como você pode me decepcionar e me magoar desse jeito? Você deve fazer isso de propósito. Só pode ser.

Tá, tá. Eu sei. Eu sei muito bem como você me criou. É por isso que faço o melhor que posso. O que mais você espera que eu faça?

Você está fazendo o melhor que pode?

Não consigo respirar. Inspiro e expiro profundamente para poder continuar. Você acha que criar confusão em todos os cantos, reclamar de tudo e botar a culpa nos outros é fazer o melhor que pode? Você tem que abrir os olhos e olhar ao redor. Ninguém vive como você e ninguém faz o que você faz. Por mais que os tempos tenham mudado, algumas coisas continuam inaceitáveis. Sempre que eu digo isso, você me trata como uma velha ignorante que não sabe de nada. Mas não é assim. Você acha que vai ser jovem a vida inteira? Acha que sempre terá tempo de corrigir todo e qualquer tipo de erro que cometer?

Minha filha fecha a cara.

Quando as pessoas dizem que alguma coisa não pode ser feita, elas têm motivos justos para tanto. Mas você insiste em sair gritando que tudo está errado neste mundo, não consigo entender por quê. Essas coisas erradas se ajeitam naturalmente com o passar do tempo. Por que você, logo você, tem que gastar energia comprando a briga dos outros? Um dia chega em casa com essa menina, que faz da vida sabe-se lá o quê. Num outro, aparece cheia de hematomas depois de brigar. Em vez de dar aula, fica lá no portão da universidade, toda descabelada e com cara de marginal, desperdiçando tempo. Eu de fato não sei por que motivo você faz questão de jogar fora o tempo da sua preciosa vida.

Você tem que falar assim?

Eu a interrompo, sem deixá-la continuar: Por que raios você tem que ficar lá daquele jeito? Tá. Você sempre gostou de aparecer, desde criança. Sempre quis fazer o que as outras crianças não conseguiam ou evitavam fazer. Eu não devia ter te elogiado por isso. Devia ter brigado, ter dado umas boas palmadas para você aprender a não ser assim. Mas, olha, isso é diferente. Você não é mais criança. Não está mais na idade de ser imprudente só para ser elogiada.

Você acha que eu gosto dessa situação?

Ainda há tempo. Procure um homem para se casar e tenha filhos. Os jovens podem errar, sim. É só endireitar enquanto é tempo. Eu sou sua mãe. Quem mais, senão eu, pode te dizer essas verdades? Ninguém neste mundo quer saber de você.

Lembranças que não têm nada a ver com isso estão despertando, prontas a acordar de vez. Acaricio o joelho e massageio os ombros tentando ignorá-las. Mas acabo vendo a imagem de Zen com nitidez. A respiração curta, o cheiro forte de xixi e o fedor dela.

Eu sou sua mãe. A juventude é curta. Não dura para sempre. Você vai ter quarenta, cinquenta anos num piscar de olhos e vai envelhecer. Pretende ficar sozinha até lá?

Falo de Zen sem mencionar o nome dela. Aquela pessoa que está envelhecendo trancada na estreita e sufocante solidão. Uma pobre mulher que desperdiçou momentos preciosos da sua vida com questões aparentemente importantes para a sociedade, como o altruísmo, mas que agora é obrigada a viver o fim de sua vida na solidão.

Fico sem ar só de pensar que a minha filha vai passar por aquilo.

Mãe, isso não é coisa dos outros. É coisa minha. Isso pode acontecer comigo a qualquer momento. E você sabe que eu não estou sozinha.

Tenho certeza de que existe um espesso muro invisível entre nós duas. Deve ser por isso que, por mais que eu grite, minha voz não chega ao outro lado. Nós já tivemos uma briga como essa quando ela entrou na universidade e anunciou que viajaria para algum lugar da África como voluntária. Mesmo não tendo sido a primeira vez que vi arruinadas minhas expectativas de ela se tornar servidora pública ou professora, fui extremamente dura. Por que logo num lugar tão perigoso? Por que logo naquele momento e por que logo a minha filha? Lembro ter falado coisas desse tipo. Mas no dia da partida, acabei lhe dando algum dinheiro, sem esquecer de pedir que, na volta, ela se empenhasse no concurso. Ela voltou quase no fim das férias de verão e saiu de casa na primavera seguinte. Foi assim, sem que eu pudesse imaginar ou consentir, que ela se declarou independente.

No dia em que a minha filha me abandonou, eu, sentada à mesa com meu marido, devorei duas porções de arroz. Em seguida vomitei e passei a noite amargando uma terrível dor de estômago. Era o estado emocional espelhado no estado físico. Ao dar minha filha como morta, tive um grande sentimento de perda. Ao pensar que ela estava viva em algum lugar, me sentia traída. Eram emoções e pensamentos inexprimíveis que me atropelavam, provocando dor.

Como assim, você não está sozinha? Está sozinha, sim. Não tem nada nem ninguém ao seu lado. Você tem um marido? Filhos? Amigos e colegas um dia vão embora. Você é tão estudada! Como é que só diz besteira, como não pode entender isso?

O ar quente fecha a minha garganta. Explosão de tosse seca.

Por que só marido e filhos podem ser família? Mãe, Rain é família para mim. Ela não é apenas uma amiga. Nós vivemos os últimos sete anos como uma família. Qual é a definição de família? Não é aquilo que te dá força no momento em que você mais precisa? Por que você chama de família isso daí que você diz ser família, mas não aceita a minha? A única coisa que aquelas pessoas fizeram foi questionar. Jogaram perguntas no ar durante a aula. Mas a universidade botou essas pessoas na rua, sem mais satisfações. Foram enxotadas feito moscas! Entendeu?

As veias em seu pescoço ficam salientes. Ao que tudo indica, suas luzes internas se acenderam e ela começa a pegar no tranco. Aonde vamos chegar conversando sobre isso ao longo de uma noite inteira? Será que conseguiremos combinar um acordo aceitável para ambas? Se isso for possível, irei até o fim. Se isso for de fato possível, estou pronta a não desistir.

Mãe, a Rain não é minha amiga. É marido e filhos para mim. Ela é família para mim, mãe.

Marido? Filhos? Vocês acham que podem tudo? Podem se casar? Ter filhos? Isso que vocês estão fazendo não passa de uma brincadeira. Estão brincando de casinha. Ninguém mais brinca de casinha com trinta e tantos anos.

A chuva bate no vidro da janela.

Você não pode simplesmente aceitar a gente do jeito que a gente é? Não estou pedindo que entenda tudo. Você não disse que existem pessoas de todo tipo no mundo? Que cada um tem seu próprio jeito de viver? Que não está errado ser diferente? Foi você quem me disse tudo isso. E por que, quando se trata de mim, você nega o que disse? Por que essas coisas não valem pra mim? Por que sou sempre a exceção?

Porque você é minha filha. Você é minha filha.