[ arquivo ]
memória
-
A água é uma máquina do tempo [fragmento]
Aline MottaNão tinha corpo e ainda brincava de bonecas. Lavava com sangue as bacias sujas do parto interrompido. O ventre se contraía e o feto escorregava ainda sem forma a cada gravidez malsucedida. Resíduos que traziam a memória da denúncia. Era o seu jeito de dizer não. A barriga não segurava bebês, ainda era um lugar […]
-
Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em forma de uma forquilha, […]
-
Mar azul – carta para Juno
Ana CarvalhoDeu no rádio que o sol nasceu hoje às 5h25 e que irá se por às 17h19. O repórter anunciou, ainda, a tábua de maré – a BAIXA-MAR, a PREIA-MAR. As alterações de pressão têm uma grande influência na atividade dos peixes. Eles se agitam nas pressões mais altas, e isso é um bom sinal […]
-
Açúcar queimado [fragmento]
Avni DoshiPrendo cartões brancos com nomes e números de emergência escritos em letras maiúsculas na parede acima do telefone de Ma. A pintura está descascando e alguns dos cartões flutuam até o chão. Persisto. Ma está sentada no sofá, me observando. Coloca a mão no meu traseiro e a move em um movimento circular áspero. — […]
-
Depois que você voltar [fragmento]
Lorena BarbosaO sorriso da minha melhor amiga, a última música da minha banda favorita, o cheiro do café da minha avó e as suas histórias que nunca tinham fim. A descoberta do meu corpo foi numa terça-feira à tarde. O calor subia pelas minhas pernas. O toque, leve como uma pluma, e a sensação de estar […]
-
Mulher imperfeita [fragmento]
Marina ApolinárioÀs vezes eu sonho com essa história, talvez tenha sido ela que me trouxe até aqui, à escrita deste ensaio. Minha mãe sempre a contou do jeito de quem via de fora. Vó contava do sobrenatural, do jeito de quem viveu. […]
-
Trilogia de Copenhagen [fragmento]
Tove DitlevsenA infância é longa e estreita feito um caixão e não dá para escapar dela por conta própria. Ela está ali o tempo todo, e todos podem vê-la tão claramente quanto se vê o lábio leporino do Belo Ludvig. Com ele acontece o mesmo que com a Lili Bela, que é tão feia que não […]
-
Pensamentos noturnos
Louise GlückHá muito tempo eu nasci.Já não há ninguém vivoque se lembre de mim quando bebê.Eu era um bebê bonzinho? Oudifícil? A não ser na minha cabeça,essa questão está agorasilenciada para sempre. […]
-
Lili – novela de um luto [fragmento]
Noemi JaffeEla adorava minhas mãos, os dedos finos e uma coisa que eu não entendia e que ela admirava: como as falanges superiores dos meus dedos se dobravam. Ela detestava que seus dedos fossem duros e inflexíveis. Engraçado reparar nisso. […]