[N.202 | 2025]

Terra grávida

Trudruá Dorrico

Erepankî. Ewonkî. Eretekî. Pri’ya nan?
É dessa maneira que, quando as parentas makuxis vão chegando na casa de uma yonpa (parente), são saudadas e cumprimentadas. Chegue. Entre. Sente-se. Você está bem?

Assim, repito aqui o mesmo cumprimento que fazem as minhas ancestrais. Chegue nestes poemas, cultivados por mulheres indígenas das nações Makuxi, Guató, Wassu-Cocal, Puri, Potiguara, Aranã, Guarani, Kariri, Galibi-Marworno, Mura, Wapichana, Afuá/Marajoara, Itaquêra. Entre nas palavras ancestrais das dezessete poetas aqui reunidas e sente-se para escutar o pensamento que a partir de suas palavras-flechas lança-se sobre a terra, a gravidez, o endométrio, o útero, os filhos, o sonho, a ausência, conselhos, eventos e sentimentos que circundam sua floresta-vida.

Na língua makuxi, wîri significa mulher. As fêmeas também são wîri, não existe uma tradução que categorize o feminino dos animais, como na língua portuguesa empregamos a palavra fêmea. Todas são mulheres: bicho e gente. Essa forma de ver o mundo está presente nos versos a seguir, pois é ela mesma um paradigma indígena, o da filiação à natureza, uma relação em que nunca cortamos nosso cordão umbilical.

“Alcançar com as mãos o útero da terra/percorrer com os dedos a linguagem da terra”, assim Sony Ferseck imprime a imagem da escrita alfabética, em língua portuguesa, sobre a primeira escrita que conhecemos, a da terra, feita pelos deuses e espíritos que habitam Yu, a floresta. Aline Pachamama também invoca a origem e reafirma poeticamente que somos filhas da terra: “No útero da Mãe,/ Eu sou barro,/ folha, flor e filha/ Inhã Uchô, Abya Yala,/ A terra me pariu Mulher/Pulso em florescimento/ Sou parte do que ela é.” A força do pertencimento se estende além, e a poeta convida ao renascimento durante esta vida, encorajando-nos a “estar no ventre da Mãe Terra e deixar-se por ela parir”.

Sentir-se filha, sentir-se afiliada à floresta, não é, no entanto, uma romantização da figura da mulher/mãe, da maternidade. É esse o apelo de Geni Núñez, que evoca as “Maternidades coletivas, onde o cuidado circula […]./ Nelas, a mesma terra que é mãe, também é filha”. A terra é mãe e família. Nesse sentido, a responsabilidade e o cuidado, tal qual na natureza, não deveriam depender apenas da mulher, pois a floresta é plural, e nela vivem maternidades coletivas.

Bárbara Kariri diz sobre a força de pertencer: “Eu posso dizer que, sendo passarinhos, temos em comum a passagem por muitos úteros./ A cada passagem, o ancestral fica mais forte, estamos presentes em toda parte, correndo no sangue da veia, na terra, árvores e estrelas.” Ser passarinho tem a mesma força de ser gente, e a hierarquia que coloca o humano acima de outras espécies – animais, vegetais e minerais – se desfaz nos versos da poeta.

Janaú evoca os seres humanos, mas também as “árvores humanas/ bichos humanos/ águas humanas/ pessoas/ gestadas em terra úmida/ em eclipses de/ sol y lua”, sem, no entanto, deixar de confrontar as cartografias que redefiniram as ilhas, os biomas, e as identidades indígenas. Eliane Potiguara, uma ancestral das poetas indígenas no Brasil, pergunta de forma direta ao país o que se faz de nós, mulheres indígenas – de nosso corpo, nossa espiritualidade e nossa cultura, em face da situação política a que somos expostas continuamente. O que ela, assim como tantas outras, nos relembra, é que geramos o povo brasileiro, e, mesmo estando desamparadas, haverá sempre uma nova geração indígena a entoar gritos de guerra “contra o massacre imundo”.

Márcia Mura, por sua vez, evidencia as violações contra mulheres indígenas que têm os registros de sua identidade indígena substituídos equivocadamente, mas não de modo ingênuo, pelos de pardas. Dando esperança a outras mulheres, diz sobre a mãe encantada protetora dos lugares, reforçando a confiança inabalável na floresta e na maternidade indígena, que é coletiva: “Cuida mãe, cuida tia, cuida avó, cuida a parenta./ Mãe de sangue, mãe cultural, filhos do ventre e do coração, presentes de Namatuyky/ Maternidade indígena tem seu ritual.”

Ao tratar da maternidade wapichana, Jama Wapichana apresenta o cuidado com a passagem do corpo da menina-moça para mulher e o livre-arbítrio para maternar, sempre com a ancestralidade conectada ao território: “Como o caimbé do Lavrado,/ firme na terra a crescer,/ nossos filhos terão raízes,/ e nunca irão se perder.”

Ellen Lima também fala da liberdade de escolha, porém da perspectiva de não maternar. Sua consciência e a experiência em cuidados coletivos e exaustivos – “habitei tantas/primaveras de amor/e infernos de cuidado” – justificam a escolha de não ser mãe. Aqui, é importante refletir que um corpo indígena que vive em grandes metrópoles não tem a mesma experiência de um corpo indígena que vive no território, cuja partilha no cuidado da saúde física e mental é de ordem da aldeia inteira, e não individual, como acontece com tanta frequência na cidade.

Gleycielli Nonato compartilha a experiência de parir, o que esse gesto de criação faz com o seu corpo e como mudam as certezas sobre o mundo a partir dele: “Quando uma mulher dá à luz, seu corpo se quebra em milhares de pedaços. […]/ O que mais lhe causa medo é a insegurança./A certeza de que a partir daquele dia/tudo está incerto.”

Ponderando sobre a experiência de dor, Debora Arruda confronta o patriarcado ao denunciar que a endometriose é tida como uma doença menor, mas se fosse sentida pelos homens não seria tratada como uma simples “doença de mulher”.

Fernanda Vieira tematiza uma realidade social que são as filhas de mulheres indígenas que se mudam para as cidades e têm de lidar com os subempregos de suas mães: “Mãe, eu tentei ficar quieta como me pediram/ Eu silenciei minha presença/ Tentei não fazer volume em nenhum cômodo/ Comi sem fazer barulho.” É importante lembrar também que muitas crianças indígenas são cooptadas por famílias que vivem na cidade com promessas de estudos e empregos, mas se tornam domésticas em situações análogas à escravização, ditas “quase da família”, mas sem nenhum direito.

Vanessa Brandão deixa uma mensagem ao filho, sobre respeitar o tempo da vida e da experiência, e ainda o das pessoas, que são um milagre – humanas e não humanas. Quem também deixa uma mensagem ao filho é Cláudia A. Flor d’Maria, que associa sua chegada a um beija-flor que se faz jardim.

No poema de minha autoria, rememoro as histórias contadas por minha mãe sobre minha chegada ao mundo, minha infância na beira do rio e a necessidade de encarar a maternidade como indígena e mulher, tendo uma profissão de escritora e habitando grandes cidades. O momento de escrita desse poema se confundiu com o tempo que antecedeu uma cirurgia em meu útero.

Um dia, quando visitei a parenta Márcia Mura, em Porto Velho, Rondônia, me recordo que seu netinho recém-nascido estava pintado com jenipapo e usava uma pulseirinha em seu braço, cheia de dentinhos. (Nós, indígenas, respeitamos muito a floresta; por isso, quando comemos carne de caça também aproveitamos os dentes para fazer colares e outros adereços.) A imagem do filho recém-nascido de uma parenta mebengokrê com grafismos no rosto é, para mim, uma das expressões coletivas de nosso orgulho. Trata-se de um orgulho que minha geração não sentiu, porque nossos pais e avós estavam ocupados com nossa sobrevivência física e mental em uma sociedade não aberta às identidades indígenas. Imagens como essa inspiraram a escrita de meus versos, que buscam dizer, entre outras coisas, que, seja pelo meu útero ou outro útero indígena, nossos espíritos vão continuar chegando da floresta – e voltando a ela, com toda a força e a beleza de nossos ancestrais.

Por fim, no poema de Myriam Krexu, que pertence ao povo Guarani, vemos um manifesto poético da maternidade indígena que corre no sangue brasileiro. Um convite a amar a terra e os povos que a consagram, a contestar as imagens dos livros de história – estes que não foram escritos pelos indígenas – e a questionar ideias que desumanizam os corpos das mulheres, matriarcas e avós indígenas. Afinal, devemos ter orgulho de ter ancestrais indígenas, cujo cuidado com a terra transcende as comunidades e vai sempre além.