[N.106 | 2024]

Trilogia de Copenhagen [fragmento]

Tove Ditlevsen

A infância é longa e estreita feito um caixão e não dá para escapar dela por conta própria. Ela está ali o tempo todo, e todos podem vê-la tão claramente quanto se vê o lábio leporino do Belo Ludvig. Com ele acontece o mesmo que com a Lili Bela, que é tão feia que não dá para acreditar que algum dia ela teve uma mãe. Tudo o que é feio ou mal-acabado a gente chama de belo, ninguém sabe por quê. Não dá para escapar da infância e ela nos acompanha como um cheiro. Dá para percebê-la em outras crianças, e cada infância tem seu próprio cheiro. Não conhecemos a nossa e às vezes temos medo de que ela seja pior que a dos outros. A gente vai e fala com outra garota cuja infância tem cheiro de cinza e carvão, e de repente ela dá um passo atrás, pois sentiu o fedor pavoroso da nossa própria infância. Disfarçadamente, você observa os adultos cuja infância está dentro deles, esfarrapada e cheia de buracos como um tapete gasto e comido por traças no qual ninguém mais pensa, que já não serve para nada. Olhando para eles, não percebemos que eles tiveram uma infância — e não temos coragem de perguntar como fizeram para atravessá-la sem que o rosto deles guarde cicatrizes e marcas profundas deixadas por ela. Você tem a impressão de que eles utilizaram um atalho secreto para chegar a sua figura adulta muitos anos antes do tempo. Fizeram isso num dia em que estavam sozinhos em casa com a infância oprimindo seu coração como três cinturões de ferro, como o João de Ferro do conto de Grimm, em que os cinturões de ferro só se partiram quando o senhor de João foi libertado. Mas se você não conhece esse atalho, vai precisar tolerar a infância e avançar ao longo dela hora após hora, ao longo de um número verdadeiramente interminável de anos. Só a morte pode nos libertar dela, e é por isso que pensamos tanto na morte, imaginando-a como um anjo amoroso vestido de branco que uma noite virá beijar nossas pálpebras para que elas nunca mais possam se abrir. Sempre acho que só quando eu for adulta minha mãe vai gostar de mim do jeito que ela gosta do Edvin. Porque minha infância a irrita tanto quanto a mim mesma, e nós duas só ficamos felizes uma ao lado da outra quando ela de repente esquece de sua existência. Aí ela fala comigo do jeito que fala com suas amigas ou com a tia Rosalia, e eu tomo o maior cuidado para que minhas respostas sejam tão curtas que ela não se dê conta de repente de que eu não passo de uma criança. Largo a mão dela e mantenho uma certa distância entre nós, para que ela também não consiga sentir o cheiro da minha infância. Acontece quase sempre quando saio com ela para fazer compras na Istedgade. Ela conta como se divertia quando era garota. Que saía toda noite para dançar e que não saía do salão. “Toda noite eu tinha um novo namorado”, diz ela, e ri alto, “mas quando eu conheci o Ditlev não deu mais pra fazer isso.” Esse é o meu pai, que em outros momentos ela sempre chama de “papai”, assim como ele a chama de “mamãe”, ou mutter. Fico com a sensação de que houve um tempo em que ela era feliz e diferente, e de que tudo isso teve um fim brusco quando ela conheceu Ditlev. Quando ela fala nele, é como se ele fosse outra pessoa e não meu pai, um espírito das trevas que esmaga e desmancha tudo o que é belo e luminoso e divertido. E eu fico desejando que esse Ditlev nunca tivesse aparecido na vida dela. Quando pronuncia o nome dele, em geral ela se dá conta de minha infância e olha para ela irritada e ameaçadora, enquanto o contorno escuro de sua íris azul fica ainda mais escuro. E nesse momento a tal infância estremece de medo e procura desesperadamente sair dali na ponta dos pés, mas ainda é pequena demais e só daqui a várias centenas de anos será possível descartá-la.

Pessoas com uma infância assim visível, notória, tanto por dentro como por fora se chamam crianças, e você pode tratá-las do jeito que quiser, porque não há nada a temer da parte delas. Elas não têm armas nem máscaras, a não ser que sejam muito espertas. Sou esse tipo de criança esperta, e minha máscara é a patetice, que sempre cuido para que ninguém tire de mim. Deixo a boca ficar um pouco aberta e faço meus olhos ficarem completamente vazios, como se eles sempre estivessem fitando o ar sereno. E sempre que ela começa a cantar dentro de mim, tomo o maior cuidado para que não apareçam buracos na minha máscara. Nenhum dos adultos consegue tolerar a canção que há no meu coração ou as guirlandas de palavras da minha alma. Mas têm conhecimento de sua existência porque pedaços dela escapam de mim por um canal secreto que não conheço e que consequentemente não consigo vedar. “Você está tramando alguma coisa?”, perguntam, desconfiados, e eu lhes garanto que nunca me passaria pela cabeça tramar alguma coisa. Na escola me perguntam: “No que você está pensando? Repita a última frase que pronunciei”. Mas na verdade eles nunca me desvendam para valer. Só as crianças do pátio ou da rua conseguem fazer isso. “Você fica se fazendo de boba”, diz uma garota grande, em tom ameaçador, e chega bem perto de mim: “Só que você não é nem um pouco boba.” Daí ela começa a me interrogar, e muitas outras garotas se aproximam em silêncio e fazem um círculo ao meu redor e não posso sair dali sem antes provar que sou mesmo boba. Diante de todas as minhas respostas idiotas elas acabam ficando na dúvida e deixam uma aberturazinha hesitante no círculo, de modo que consigo me esgueirar pelo meio delas e me safar, em busca de segurança. “Porque você não pode fazer de conta que é uma coisa que não é, grita uma delas atrás de mim, recriminadora e moralista.

A infância é escura e está sempre choramingando como um animalzinho trancado num porão e esquecido. Ela sai de sua garganta como seu bafo quando o ar está gelado, e às vezes é muito pequena, outras grande demais. Nunca se encaixa direito. Só depois que nos despojamos dela como de uma pele, é possível considerá-la com calma e falar dela como de uma doença que ficou para trás. A maioria dos adultos diz que teve uma infância feliz e talvez eles próprios acreditem nisso, mas eu não acredito. Acredito que essas pessoas simplesmente tiveram a sorte de esquecê-la. Minha mãe não teve uma infância feliz, e sua infância não está tão sepultada nela como em outras pessoas. Ela me conta como era apavorante quando seu pai tinha delirium tremens e todos eles precisavam ficar segurando a parede para que ela não caísse em cima dele. Quando digo que sinto pena dele, ela grita: “Pena! A culpa era dele mesmo, aquele porco beberrão. Ele bebia uma garrafa inteira de aguardente por dia e, apesar de tudo, as coisas melhoraram muito para nós quando ele enfim tomou coragem e se enforcou”. Ela diz também: “Ele assassinou meus cinco irmãos menores. Tirava eles do berço e esmagava a cabeça deles contra a parede”. Uma vez perguntei a tia Rosalia, a irmã de minha mãe, se aquilo era verdade, e ela respondeu: “Óbvio que não é verdade. Eles simplesmente morreram. Nosso pai era um homem infeliz, mas sua mãe tinha só cinco anos quando ele morreu. Ela herdou o ódio que vovó tinha dele”. Vovó é a mãe delas, e mesmo ela sendo velha agora, posso bem imaginar que sua alma seja capaz de acumular muito ódio. Vovó mora na ilha de Amager. Tem o cabelo todo branco e sempre se veste de preto. Assim como com meu pai e minha mãe, só posso me dirigir a ela usando a terceira pessoa, o que torna todas as conversas muito difíceis e cheias de repetições. Ela faz o sinal da cruz antes de cortar o pão, e depois de cortar as unhas queima as aparas no fogão. Pergunto por que faz isso, mas ela diz que não sabe. Que é uma coisa que a mãe dela fazia. Como todos os adultos, não gosta que as crianças façam perguntas sobre alguma coisa, e só dá respostas curtas. Para qualquer lado que você se vire, dá com a sua infância e se machuca, pois ela tem arestas e é dura e só desiste depois de despedaçar você por inteiro. Pelo jeito cada um tem uma, todas diferentes umas das outras. A infância do meu irmão, por exemplo, é muito barulhenta, enquanto a minha é silenciosa e furtiva e vigilante. Ninguém gosta dela e ninguém vê utilidade nela. De repente ela se encomprida demais, e posso olhar minha mãe nos olhos quando estamos as duas em pé. A gente cresce enquanto dorme, diz ela. Aí procuro ficar a noite inteira acordada, mas o sono me domina e pela manhã fico bem tonta ao olhar para meus pés, vendo o tamanho da distância a que estão. “Que varapau!”, gritam os moleques da rua quando eu passo, e se continuar assim vai chegar o dia em que vou precisar me mudar para Stormogulen, que é onde crescem todos os gigantes. Agora a infância dói. O nome disso é dores do crescimento, que só param quando a gente tem vinte anos. E o que diz Edvin, que sabe tudo, inclusive sobre o mundo e a sociedade, igualzinho a meu pai, que o leva a reuniões políticas que, na opinião da minha mãe, podem acabar com os dois trancafiados pela polícia. Eles não ligam quando ela diz essas coisas, pois como eu ela não entende nada de política. Ela também diz que meu pai não arruma trabalho porque é socialista e membro do sindicato, e que Stauning, cuja foto meu pai pendurou na parede ao lado da foto da mulher do marinheiro, um dia ainda nos leva ao desastre. Eu gosto do Stauning, que já vi e ouvi muitas vezes no parque Fælled. Gosto dele porque sua barba comprida balança tão alegremente ao vento, e porque ele chama os trabalhadores de “camaradas”, mesmo sendo primeiro-ministro e podendo se permitir ser muito mais metido a besta do que isso. No que diz respeito a política, eu acho que minha mãe está errada, mas ninguém se interessa pelo que as meninas acham ou deixam de achar sobre esse tipo de coisa.

Um dia minha infância tem cheiro de sangue, coisa que não posso deixar de perceber e saber. “Agora você pode ter filhos”, diz minha mãe. “Muito cedo, você ainda nem completou treze anos.” Sei muito bem como se faz para ter filhos, porque durmo junto com meus pais e, seja como for, não tem como não saber isso. Mas ao mesmo tempo não sei, e imagino que a qualquer momento posso acordar com um bebê ao meu lado. O nome vai ser bebê Maria, porque vai ser uma menina. Não gosto de garotos e não tenho permissão para brincar com eles. Edvin é o único que eu amo e admiro, e só com ele consigo imaginar me casar. Mas não se pode casar com irmão, e mesmo que se pudesse, ele não ia querer se casar comigo. Ele já falou isso um monte de vezes. Todo mundo gosta do meu irmão, e muitas vezes penso que a infância dele combina mais com ele do que a minha comigo. Ele tem uma infância sob medida, que se expande harmonicamente com seu crescimento, enquanto a minha foi feita
para uma menina inteiramente diferente, para a qual estaria adequada. Quando tenho esses pensamentos, minha máscara fica ainda mais tola, pois é impossível falar desse tipo de coisa com qualquer um — e sempre sonho encontrar uma pessoa misteriosa, que me ouça e me entenda. Sei, pelos livros, que esse tipo de pessoa existe, só que não há nenhuma na rua da infância.