[N. 166 | 2025]

Um em cada quatro

Francesca Cricelli

Tenho sonhado com ratos. Pequenos ratinhos do campo. No sonho matei a mãe deles e os pequenos agora estão órfãos, tateando pelo chão. Tenho medo de abrir um armário onde acho que vou encontrar a rata-mãe, a rata que matei. Ao acordar lembro-me que meu sonho não é de fato meu, mas o resquício de alguma leitura. Os ratos dos meus sonhos não são meus, talvez sejam de Clarice Lispector. Sim, é a voz de Clarice em “Perdoando Deus” que se aninhou em mim, tomou posse da minha memória. Uma amiga garante que não foi Clarice, mas Juliette Binoche. Então meu sonho não é meu, é de Kieslowski. No filme Azul, a protagonista, ao perder o marido e a filha num acidente, também convive com uma família de ratos e acaba matando a rata-mãe.

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É a quinta semana que há uma greve de professores na Islândia. Entre todas as categorias de grevistas, somente o jardim da infância – leikskóli – literalmente escola para brincar, não tem data para voltar a funcionar. O pedido por um reajuste salarial e condições acordadas em 2016 é justo e indiscutível. Na primeira semana abracei a causa com entusiasmo, dividi as horas de cuidado com uma amiga, estive com sua filha e ela com o meu. É a quinta semana e sinto-me num campo brumoso, sem bússola, meu olhar não alcança nada à vista.

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Pertenço à mesma categoria das grevistas, mas a escola onde trabalho é privada e por isso é provável que jamais entrará em greve. Nem todo mundo sabe o quanto o corpo de uma mulher, após tornar-se mãe, perde sua possibilidade de recolocação no mundo. Se esse corpo é imigrante, o deslocamento é maior. Segundo as estatísticas islandesas, uma em cada cinco trabalhadoras na educação pré-escolar é estrangeira. Em 2023 ocupamos 23,3% dos empregos nessa área e 53% entre as trabalhadoras que se ocupam da alimentação e da limpeza.

Quando no final da tarde os pais recolhem seus filhinhos, olham, a maior parte deles, com um sorriso agradecido, trocamos poucas palavras. Aqui na Islândia eu crio os filhos dos outros. Os pais destas crianças não sabem que ajoelhada amparando-os há uma escritora, tradutora, muito menos uma pesquisadora que defendeu um doutorado sobre poesia italiana. Na Islândia, para sobreviver, vendo meu corpo de mãe. Vendo-o por hora. Vendo meu colo, meus braços, meu acalanto, minha paciência e inventividade. Minha capacidade de brincar. Vendo 60% da minha jornada cuidando dos filhos dos outros para poder pagar as contas e criar meu filho. Quando sua escola entrou em greve, perdemos nossa única rede de apoio nesse país. Eu só posso cuidar dos filhos dos outros se alguém cuidar do meu.

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No filme de Kieslowski, na verdade, Juliette Binoche não mata nem a rata-mãe nem seus filhos. Observa-os. Fecha a porta, retira-se de cena. Obriguei-me a procurar o trecho de filme, preocupada com a mistura que tem se tornado a minha mente confusa no corpo cansado.

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Desde que me tornei mãe, vivo consumida pelo magma do amor mais visceral do mundo. O amor encarnou-se num rosto com sorriso e bochechas amplas e olhos rasgados em forma de amêndoas, sobrancelhas espessas. A outra medalha desse amor é a saudade infinita do pai do meu filho. Continuamos dormindo lado a lado na mesma cama, mas somos tudo o que temos para que ele se mantenha vivo e seja feliz. Há dias em que emergimos da nossa exaustão e nos encontramos, quase como nos velhos tempos. Toda vez que caminho pelas ruas de Reykjavík sinto uma pontada no peito, lembro-me de quando andávamos de mãos dadas pelas ruas do centro imersos na escuridão invernal e rodeados pelas luzes de Natal. Lembro-me de quando Islândia era o desejo provocado pelo desconhecido. A promessa do porvir. Meus primeiros dias de neve. Minha primeira tempestade trancada em casa. A água das piscinas públicas, o calor de casa. Essa pitada de incógnito rodeava e zumbia dentro do meu ventre, uma abelha atordoada pela doçura do mel, a terra e seus tremores à espera de uma nova erupção.

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Nos meses que precederam a erupção de março de 2021 em Fagradalsfjall, na península de Reykjanes, sentimos 50.000 terremotos sob nossos pés. Eu estava ocupada tecendo os órgãos do meu filho que ainda vivia sua vida aquática em meu ventre. Mas lembro-me de estar deitada e ouvir um barulho imperceptível, a sensação de que um caminhão desgovernado passava diante da nossa casa.

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Nas semanas de greve assistimos com frequência à animação Ponyo de Hayao Miyazaki. Meu filho encanta-se com o desejo da garota-peixe em criar suas próprias pernas, mexe os dedos do pé como a protagonista e diz: olha só, parece mãozinha, mamãe. Também me surpreendo com a força do desejo que move marés e retira, pelo menos na intenção, os pequenos seres das suas solidões. A menina-peixe das profundezas do oceano, o menino encastelado na casa no alto da encosta. Acho que foi assim que o filho nasceu em mim, nasceu em nós.

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O cansaço do corpo produz pequenas alucinações na mente. Outro dia vi um pequeno rato cruzando freneticamente entre os pezinhos das crianças da escola onde trabalho. Outro dia também achei que pudesse me apaixonar por um colega de trabalho que tem excelente gosto musical. Nos gestos repetitivos da troca das fraldas, colocar ou retirar as crianças dos carrinhos onde dormem a sesta após o almoço, insisto em criar narrativas que sustentem minhas pernas, meu tronco, minha cabeça. Quero que juntos cheguemos ao fim do mês. Que possamos pagar nossa hipoteca nesse quinhão de paraíso do Estado Social.

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Há algumas noites tenho sonhado com uma longa avenida, dirijo na escuridão e ao meu lado direito estão enfileiradas todas as casas onde já vivi.

Reykjavík, outubro de 2024