[N.138 | 2025]

Uma morte suave [Fragmento]

Simone de Beauvoir

A Mamã fez a sua entrada na vida social espartilhada pelos princípios mais rígidos: conveniências de província e moral conventual.

Com vinte anos, sofre um novo desaire afectivo: o primo por quem estava apaixonada escolheu casar com outra prima, a minha tia Germaine. Desses desastres sentimentais, ela guardou durante toda a vida um fundo de susceptibilidade e de ressentimento.

Ao lado do Papá, ela floresceu. Amava-o, admirava-o e, durante dez anos, ele realizou-a sem dúvida em termos físicos. Ele adorava mulheres, tinha tido inúmeras aventuras, e pensava – como Marcel Prevost, que lia deliciado –, que não se deve tratar a esposa com menos desvelos do que uma amante. O rosto da Mamã, com aquela leve penugem que sombreava o lábio superior, traía uma profunda sensualidade. A cumplicidade existente entre eles era óbvia: ele acariciava os braços da Mamã, mimava-a, murmurava-lhe ternas palavras. Revejo-a um dia de manhã – teria eu seis ou sete anos –, descalça sobre o tapete encarnado do corredor, vestida com a sua comprida camisa de dormir de algodão; os cabelos caíam-lhe em cachos sobre a nuca e fiquei fascinada pelo brilho do seu sorriso, para mim misteriosamente ligado a esse quarto do qual ela acabara de sair; mal conseguia reconhecer naquela resplandecente figura a pessoa adulta e respeitável que a minha mãe era.

Mas nunca nada apaga a nossa infância. E a felicidade da Mamã com o meu pai não tinha decorrido sem nuvens escuras. Logo desde a viagem de núpcias, o egoísmo do Papá tinha-se manifestado; ela desejava ir visitar os lagos italianos: ficaram-se por Nice, onde abria a época das corridas. Ela recordava com frequência esse desapontamento, sem ressentimento, mas com mágoa. Apreciava viajar. “Eu gostava de ter sido exploradora”, dizia ela. Os melhores momentos da sua juventude tinham sido as excursões a pé ou de bicicleta organizadas pelo meu avô, atravessando os Vosgos e o Luxemburgo. Foi obrigada a renunciar a muitos dos seus sonhos: os desejos do Papá estavam sempre em primeiro lugar. Deixou de conviver com as amigas mais chegadas, cujos maridos o Papá achava entediantes. Ele só se divertia nos salões e no teatro da vida social. Ela acompanhava-o alegremente, apreciava a vida mundana. Mas a sua beleza não a protegia da maledicência; ela era da província, demonstrava rigidez de maneiras; nesses meios caracteristicamente parisienses, troçaram da sua timidez. Algumas das mulheres que ela conhecia tinham tido ligações com o meu pai: eu podia calcular as bisbilhotices, as insinuações. O Papá guardava na sua secretária a fotografia da sua última amante, espirituosa e bonita, que vinha de vez em quando a nossa casa com o marido. Trinta anos depois, rindo-se, disse à Mamã: “Diz lá que não te livraste da fotografia.” Ela negou-o, sem conseguir convencê-lo. Certo é que, mesmo durante a sua lua-de-mel, ela sofreu golpes no seu amor-próprio e no seu orgulho. Sendo ela temperamental e íntegra, as suas feridas cicatrizavam dificilmente.

E, depois, o meu avô faliu. Ela sentiu-se desonrada, de tal modo que rompeu com todas as suas relações de Verdun. O dote prometido ao Papá nunca foi entregue. Ela considerou um gesto sublime o facto de ele nunca lhe ter guardado ressentimento por isso, e, durante toda a vida, sentiu-se em falta perante ele.

Apesar de tudo: um casamento feliz, duas filhas que a amavam, uma relativa abundância; a Mamã, até ao fim da guerra, nunca lamentou a sua sorte. Ela era carinhosa, alegre, e o seu sorriso fascinava-me.

Quando a situação financeira do Papá mudou e nos confrontámos com uma quase pobreza, a Mamã decidiu tomar conta da casa sem auxílio. Infelizmente, as tarefas domésticas aborreciam-na mortalmente, e, dedicando-se-lhes, ela sentia estar a rebaixar-se. Era capaz de abnegação, de esquecer-se de si, por amor pelo meu pai, por nós. Mas ninguém pode afirmar: “Sacrifico-me”, sem sentir uma profunda amargura. Uma das contradições da Mamã consistia em acreditar no carácter sublime do sacrifício de si própria, e no facto de, simultaneamente, ter gostos, repugnâncias, desejos demasiado imperiosos para evitar odiar aquilo que os contrariava. Insurgia-se constantemente contra as obrigações e privações que se impunha a si própria.

É pena que os preconceitos a tenham impedido de adoptar a solução que vinte anos depois escolheu: trabalhar fora de casa. Teimosa, conscienciosa, dotada de boa memória, poderia ser empregada de livraria, secretária: teria então aumentado a sua auto-estima, em vez de se sentir diminuída. Teria criado as suas próprias relações sociais. Ter-se-ia furtado a uma dependência que a tradição lhe apresentava como natural, mas que de modo algum convinha ao seu temperamento. E teria provavelmente suportado melhor a frustração que então sentia.

Não recrimino o meu pai. É sabido que, no homem, a rotina mata o desejo. Com o tempo, a Mamã tinha perdido a sua frescura primeva e o Papá o seu ardor. Para despertar esse ardor ele recorria às profissionais do café de Versailles ou às hóspedes do Sphinx. Entre os meus quinze e vinte anos, surpreendi-o mais de uma vez regressando a casa às oito horas da manhã, tresandando a álcool e contando, com ar comprometido, vagas histórias de partidas de bridge ou de poker. A Mamã recebia-o sem dramas; talvez até acreditasse nele, de tal modo tinha sido educada para fechar os olhos às verdades incómodas. Mas não se resignava à indiferença do meu pai. Que o casamento burguês fosse apenas uma instituição contra-natura, o seu caso bastaria para persuadir-me disso. A aliança colocada na sua mão esquerda tinha-a autorizado a conhecer o prazer carnal; os seus sentidos tinham-se tornado exigentes; com trinta e cinco anos, na força da idade, já não podia satisfazê-­los. Ela continuava a dormir ao lado do homem que amava e que já só raramente fazia amor com ela: tinha esperança, aguardava, consumia-se em devaneios e fantasias, sem resultado. Uma abstinência total teria ferido menos o seu orgulho do que aquela promiscuidade forçada. Não me espanto de que o seu humor se tenha modificado: bofetadas, gritarias, cenas, não apenas na intimidade, mas mesmo na presença de convidados. “Françoise tem um feitio execrável”, dizia o Papá. Ela concordava que “fervia em pouca água.” Mas ficava irritada quando lhe diziam que as pessoas comentavam: “Françoise é tão pessimista!”, ou: “Françoise está neurasténica.”

Quando era mais jovem, gostava de arranjar-se. Ficava radiante quando lhe diziam que parecia ser a minha irmã mais velha. Um primo do meu pai que tocava violoncelo, e que ela acompanhava ao piano, cortejava-a respeitosamente: quando casou, ela detestou a sua mulher. Quando a sua vida sexual e a sua vida mundana se degradaram, salvo nas circunstâncias excepcionais em que era obrigatório “estar apresentável”, a Mamã deixou de cuidar da sua aparência. Recordo um regresso de férias; ela estava à nossa espera na estação de comboios, tinha posto um bonito chapéu de veludo, cujo véu ocultava parcialmente o seu rosto, e um pouco de pó-de-arroz. A minha irmã exclamou, encantada: “Mamã, pareces uma senhora da sociedade!”. Ela riu-se sem segundas intenções, pois tinha deixado de se preocupar com questões de elegância. Em relação a suas filhas e a si própria, levava o menosprezo pelo corpo que lhe tinham ensinado no convento até à falta de higiene. No entanto – mais uma das suas contradições –, ainda desejava agradar; as palavras lisonjeiras envaideciam-na; ela reagia com coqueteria. Ficou inchada quando um amigo de meu pai lhe dedicou um livro (publicado em edição de autor): “A Françoise de Beauvoir, cuja vida me suscita a maior admiração.” Ambígua homenagem: ela despertava admiração por meio da anulação de si que lhe negava admiradores.

Privada das alegrias da carne, das compensações da vaidade, sujeita a tarefas ingratas que a entediavam e humilhavam, aquela mulher orgulhosa e teimosa não tinha vocação para a resignação e o sacrifício. Entre seus acessos de cólera, não deixava de cantarolar, de brincar, de tagarelar, abafando assim, ruidosamente, os sussurros do seu próprio coração. Após a morte do Papá, tendo a tia Germaine sugerido que ele não fora propriamente o marido ideal, ela insurgiu-se com violência: “Sempre me fez feliz.” E, decerto, ela nunca deixara de repetir isso a si própria. Ainda assim, esse optimismo de princípio não bastava para preencher a sua necessidade de realização individual, a sua fome de viver. Portanto, abraçou o único caminho que se lhe oferecia: alimentar-se das vidas jovens que tinha a cargo. “Eu, ao menos, nunca fui egoísta, vivi sempre em função dos outros”, disse-me ela mais tarde. Sem dúvida; mas também por intermédio deles. Possessiva, dominadora, teria querido prender-nos na concha da mão, dedos tornados garras. Mas foi no momento em que precisou dessa compensação que nós começámos a desejar liberdade e privacidade. Vários conflitos nasceram e acabaram por explodir, não ajudando a Mamã a recuperar o seu equilíbrio.