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.: Gesto de gravidade [fragmento]
as mãos são ímãs
deslizam magnéticas
até o ventre
gesto de gravidadeali
um nadinha de toneladas
a consciência da vida pesa -
.: Letras
desejo escrever
me falta coragem de encarar o ritual do desencontro
um mar de recuos
receio e deixo o lápis mudo
o papel impuro
tenho medo de que veja nas frestas de ínfimos abismos
o que do outro não se deve ver -
.: Minha mãe
Não me ensinaram a falar
deram-me de pedir sem vestes.
Não me ensinaram a fugir
deram-me de ter rédeas caídas.
Não me ensinaram a escrever
deram-me de talhar uma tábua sobre o rio. -
.: A filha
Chora
Pede colo para a mãe
O telefone toca
O leite derrama
A menina febril
Na carteira não há dinheiro
Onde está o papai?
Pergunta a filha
Não pôde vir, diz a mãe -
.: Oração
Que meu corpo se livre do peso da impossibilidade de atender ao desejo do outro.
Que meus braços abracem o mundo e por enquanto alcancem um pouco, mas apenas um pouco além do que eu acreditava ser possível.
Que minhas mãos teçam, amassem, moldem, pintem, escrevam, que meus dedos apontem, entrelacem.
Que meus olhos repousem fechados, mas que abertos estejam atentos para o céu, para os próprios movimentos, para outros olhares… bem fundo, entregues.
Que minha boca profira o que for necessário para que eu não me engasgue com as palavras, mas que cuide de quem ouve.
Que meus ouvidos ouçam tudo, mas que escutem com cuidado, e que venha para o peito o que é meu. -
.: Niketche, uma história de poligamia [fragmento]
E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua esposa – intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.
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.: A contagem dos sonhos [fragmento]
Um fio branco solitário, com um leve brilho. Estiquei-o completamente, soltei e depois estiquei de novo. Não arranquei. Pensei: Estou ficando velha. Estou ficando velha, o mundo mudou e ninguém nunca me conheceu de verdade. Uma torrente de pura melancolia encheu de lágrimas meus olhos.
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.: Cartas a uma negra [fragmento]
[…] onde moro, são cinco pares de pés para calçar, dez braços gelados para abraçar o meu pescoço, cinco cabeças que continuam a repousar no meu peito, embora eu force a barra para achá-los grandes demais e sabichões demais para isso.
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.: Receita de despedida
Quero aprender a fermentar legumes, usar missôs, enfiar a faca num corte certeiro, temperar, não comer cru, nem queimar a boca. Sentir o gosto, a textura e o cheiro das palavras. Dizer das nozes-moscadas que ralei mais do que deveria e que, mesmo tão pequenas, roubaram o sabor do meu prato; das águas que ferveram demais e sujaram meu fogão; das comidas suculentas que me lambuzaram.