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A escola, desde o primeiro dia, logo me pareceu um lugar bem mais alegre que minha casa. Era o local do bairro em que eu me sentia mais segura, e ia para lá muito emocionada. Prestava atenção nas aulas, executava com o máximo zelo tudo o que me mandavam fazer, aprendia. Mas acima de tudo gostava de agradar à professora, gostava de agradar a todos. Em casa eu era a preferida de meu pai, e meus irmãos também gostavam de mim. O problema era minha mãe, com ela as coisas nunca iam por um bom caminho. Já na época, quando eu tinha pouco mais de seis anos, tinha a impressão de que ela fazia tudo para me mostrar que eu era supérflua em sua vida. Não tinha simpatia por mim, nem eu por ela.
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Primeiro vem em forma de histórias infantis. Uma mais importante que a outra. São muitas. Sempre que tem oportunidade, minha mãe me presenteia com um livro de histórias infantis. Conheço todos os clássicos. Ela deita ao meu lado e lê. Com as longas unhas pintadas de vermelho, o esmalte descascando de tanto lavar roupa, de tanto lavar pratos, de tanto limpar a casa e cozinhar, ela me aponta o que vai lendo. Então a leitura entra na minha cabeça sem avisar, sem dizer nada. É impossível dissociar a aprendizagem da leitura dessa unha de esmalte descascado que vai percorrendo palavra por palavra. E por que uma letra é diferente da outra? E por que essa letra “a” é diferente daquela letra “a”? Ela explica tudo.
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Não tinha corpo e ainda brincava de bonecas. Lavava com sangue as bacias sujas do parto interrompido. O ventre se contraía e o feto escorregava ainda sem forma a cada gravidez malsucedida. Resíduos que traziam a memória da denúncia. Era o seu jeito de dizer não. A barriga não segurava bebês, ainda era um lugar impenetrável, inviolável, inquebrável. Começou com treze anos aquele aperto. O tempo agora passaria por um funil, estreito conta-gotas. Michaela não daria nenhum filho a Eurico.
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13 de maio
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.
… Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.
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Abril de 2020 foi o último mês da minha vida. Eu tinha acabado de completar vinte anos, de me entender mulher, de me reconhecer no espelho, de decidir que queria fazer faculdade, de me descobrir capaz de ser corajosa. Num segundo eu era gigante, noutro eu era menor que dois riscos rosados em um palito mergulhado num pote de urina. Pode-se morrer e nascer no meio segundo que essas linhas demoram para aparecer.
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No domingo,
de presente,
eu quero
uma mãe.Que seja loura
que seus olhos
sejam verdesinzas,
que seu nariz
seja nem bonito, nem feio. -
Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita
Conceição EvaristoN. 129 | 2025Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em forma de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta, rente às suas pernas abertas. Mãe se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-la entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um grande sol, cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene
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O parto do Gustavo foi liso, o que no jargão dos obstetras significa tranquilo, sem intercorrências. Da banheira oval da maternidade, passei à sala cirúrgica. Força, descansa, força, descansa, força, força, força! Lá estava ele, branquinho, corado, túrgido e roliço como uma beluga. Agarrou o peito com voracidade, agitando as pernas e os bracinhos nus.
As belugas são uma espécie singular de cetáceo. Adaptadas ao ambiente ártico, possuem apenas um orifício respiratório, carecem de nadadeira dorsal, apresentam uma volumosa proeminência frontal. Não podem ser chamadas de golfinhos, nem de baleias.
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O tema da maternidade é central para a psicanálise, seja pela chave edípica, na qual a tragédia de Sófocles1 serve de inspiração para Freud, seja pelo aporte que psicanalistas como Melanie Klein trouxeram sobre a crucialidade das relações precoces.
O mito explorado por Sófocles se presta a ilustrar as ideias do inventor da psicanálise porque trata da busca da identidade, de respostas sobre nossa origem e sobre quem somos. Édipo não sabe que é filho de Laio e de Jocasta e, portanto, não sabe que matou inadvertidamente o próprio pai ou que desposou e teve filhos com a própria mãe.