• Enquanto [fragmento]

    Maria Carolina Fenati
    126 | 2024

    São os meus seios que dizem que tenho filhas. Quando me olho no espelho, quando visto o maiô, quando minhas meninas se deitam no meu colo como se fossem bebês e saltam dele crescidas e alegres, quando desejo e sou desejada por alguém – meus seios dizem que tenho filhas. Das duas vezes que engravidei, eles ficaram enormes antes que eu soubesse que na barriga havia uma bebê. Quando ainda sentia vertigem por estar grávida, sonhei que meus seios eram feitos de pedras preciosas que rolavam umas sobre as outras e entre elas brotava o leite. Começando pelos seios, a maternidade me envolvia, e o que eu imaginava antes sobre estar grávida dissipava-se como poeira.

  • Bebê tem fascinação por lâmpadas. Ri para o vidro ligado ou desligado. Ri para o bulbo. Ri para o fio solto pendulando, assoprado pelo ventilador. Nós acordamos de madrugada para alimentar Bebê e não vemos sua risada para a lâmpada no escuro, nem Bebê vê o que não vemos. Só olha para onde está a lâmpada, fria, apagada, vidro. Nós sabemos do vidro. Sabemos que ele é maleável feito lava quando quente e duro quando esfria, rápido. Sabemos que é possível usar duas tábuas e com firmeza achatar o vidro quente, transformá-lo numa coisa achatada que tem o mesmo aspecto do chiclete que meninos sem casa catam na rua para remascar.

     

  • In Vitro [fragmento II]

    Isabel Zapata
    124 | 2024

    Escrevo um exercício de memória futura. Vou tecendo os dias que passaram com os que faltam para contar a história que quero que minha água-viva lembre quando for capaz de lembrar. No processo decido também aquilo que quero que ambas esqueçamos, apago a sensação que a solução de glicose me deixou na garganta.

    Se uma rede é um conjunto de buracos desenhado para conservar apenas uma fração do vasto mar em que se submerge, aqui o espaço em branco também excede o que foi dito. Por isso estas páginas resistem a ser um diário. Parecem-se mais com um romance em série, uma invenção, uma maneira de clarear a voz.

  • As tarefas domésticas

    Natalia Ginzburg
    N. 123 | 2024

    Sem poder dormir, a velha mãe costuma se levantar, desce à cozinha e prepara um café enquanto ainda está escuro. Depois senta no sofá da sala de jantar, fica ali fumando e espera o dia amanhecer.

    Ela gostaria de começar logo as tarefas domésticas: varrer as escadas, lavar o chão, limpar portas e janelas. Não pode, pois todos dormem; e essas ações em que pensa e que não executa queimam-na como fogo frio. Quando jovem, era desorganizada e preguiçosa; envelhecendo, ficou com mania de organização e com uma espécie de amor torpe pelas tarefas domésticas; os filhos, as noras e os amigos costumam censurar essa sua paixão, a definem como um sinal degradante e deplorável de velhice e pobreza de espírito.

  • Palavras de diário

    Carolina Vaz
    N. 122 | 2024

    A mulher escreve um diário
    Escreve mazelas e paixões
    Quase fala do mesmo
    Em seu diário escreve
    o que precisa esquecer
    o que se precisa lembrar
    Assim a palavra estampa
    um lugar tão desnudo quanto ela

    Nessas páginas revela segredos
    que esconde de si mesma
    Constatações sutis
    É preciso uma lente de aumento ou uma película turva
    depende da angústia que se pode suportar
    e da lucidez com que se decide seguir

  • O gosto da voz

    Autora anônima
    N. 121 | 2024

    Um quadril que balança solto. Um quadril que dança, ativo, em encontro com a música. Esse foi o ponto que toquei ontem em minha sexualidade. O ventre que abrigou dois filhos e se abriu para a passagem deles se move agora em solitude, em encontro comigo.

    O desejo da maternidade, tão vivo em mim desde criança, revelava muitas dores. Entre elas – e talvez a mais premente: a da sexualidade. Sexo, para mim, era algo terrível, obrigatório apenas para manter um relacionamento e para que o homem sentisse prazer. Impossível uma mulher sentir prazer em algo tão sujo. Eu não tinha a menor vontade de me relacionar com homens. Na primeira vez que um deles tentou, eu estava como morta, paralisada. Eu tinha dezessete anos, foi alguns dias depois da morte do meu pai.

  • Nascer

    Andréa Cançado
    N. 120 | 2024

    Transcorridos mais de três meses, quase quatro, ainda não se entendiam. A vida seguia um inferno e, sem se dar conta, o novo ser se apropriava do seu corpo. Seria mãe.

    Numa tarde, uma tarde de primavera, ela dirigia por uma avenida imensa, lotada de carros, tantos que seu olhar não alcançava o começo da fila, pessoas apressadas caminhando em todas as direções, vozes, buzinas e gás carbono.

    O passageiro do lado, aquele que deveria cuidar, agredia: com gestos, tons e caras. Dizia vire, siga, pare, vai bater. Você é burra? Ligava o rádio, mudava de estação a cada segundo, aumentava o som. Gritava novamente, rápido, à direita, devagar. Puta que pariu.

  • De repente

    Juliana Belo
    N. 119 | 2024

    Língua-mãe
    Por nove anos
    mamãe o dia todo.
    De repente
    a tua língua desaprende
    meu nome,
    tua mãe.
    Agora, fala pré-adolescência,
    a palavra desse teu vasto mundo.
    Quando foi que a língua
    se torceu
    e eu fiquei um pouco muda,
    sem saber falar com você?

  • Mar azul – carta para Juno

    Ana Carvalho
    N. 118 | 2024

    Deu no rádio que o sol nasceu hoje às 5h25 e que irá se por às 17h19. O repórter anunciou, ainda, a tábua de maré – a BAIXA-MAR, a PREIA-MAR. As alterações de pressão têm uma grande influência na atividade dos peixes. Eles se agitam nas pressões mais altas, e isso é um bom sinal para a pesca.

    Imagine você, que, antes da invenção do barômetro, os pescadores adivinhavam os peixes pelo brilho resplandecente na superfície das águas. A dança cósmica do planeta, que altera correntes, movimentos de fundo marinho, a predição dos ventos e o fluxo das ondas.

    No dia em que você viu o mar pela primeira vez, seu rosto era todo espanto.