• Açúcar queimado [fragmento]

    Avni Doshi
    N. 117 | 2024

    Prendo cartões brancos com nomes e números de emergência escritos em letras maiúsculas na parede acima do telefone de Ma. A pintura está descascando e alguns dos cartões flutuam até o chão. Persisto. Ma está sentada no sofá, me observando. Coloca a mão no meu traseiro e a move em um movimento circular áspero.

    — Você vai ter um bebê.

    Olho para ela.

    — Não vou, não.

    — Em breve, muito em breve.

    — Acho que não. Não estamos prontos.

    — Eu sei que vai. Vi num sonho.

  • Minha mãe vive aqui

    Isabel Zapata
    N. 116 | 2024

    As coisas que tenho me pesam. Há objetos que acumulo por gosto, necessidade ou herança e que invadem os metros quadrados a que tenho o atrevimento de chamar de meus. Não é uma revelação new age nem uma diatribe anticapitalista dizer que, em alguns momentos, sinto que as coisas se apoderam de mim: o baú amarelo de Olinalá entupido de fotos velhas, o tinteiro de vidro, a louça branca de minha avó, guardada há anos em caixas de papelão. Tudo marcado pela doença de seus donos anteriores, com tumores nos pulmões e no pâncreas: quero conservar esses objetos, mas não quero voltar a vê-los.

  • Raiva e ternura

    Adrienne Rich
    N. 115 | 2024

    Anotação no meu diário, novembro de 1960

    Meus filhos me causam o sofrimento mais delicado que já experimentei. É o sofrimento da ambivalência: a alternância fatal entre o ressentimento amargo e os nervos à flor da pele, a gratidão jubilosa e a ternura. Às vezes, diante dos meus sentimentos por esses pequenos seres inocentes, pareço, até para mim, um monstro de egoísmo e intolerância. Suas vozes desgastam meus nervos, suas necessidades constantes, acima de tudo a necessidade de simplicidade e paciência, me enchem de desespero por minhas falhas e também por meu destino, que é servir em uma função para a qual não sou adequada.

  • Mamãe & Eu & Mamãe [fragmento]

    Maya Angelou
    N. 114 | 2024

    Esta é uma história que ficou marcada na minha memória, e já contei parte dela antes.

    Ele se chamava Mark. Era alto, negro e musculoso. Se a beleza fosse um cavalo, ele teria lugar garantido na Real Polícia Montada Canadense. Ele queria tornar-se lutador de boxe, e sua inspiração era Joe Louis. Saiu do Texas, onde nasceu, e conseguiu emprego em Detroit. Lá, pretendia ganhar o suficiente para encontrar um treinador que o ajudasse a se transformar em um boxeador profissional.

  • Feliz aniversário mamãe

    Maryse Condé
    N.113 | 2024

    O aniversário de minha mãe era dia 28 de abril, data que nada jamais poderá apagar de minha memória. Era todo ano um acontecimento agendado com precisão como uma consagração. Na escola Dubouchage, onde ela ensinava havia vinte anos, suas alunas preferidas, pois ela tinha sua corte, recitavam-lhe elogios e entregavam-lhe um buquê de rosas, suas flores preferidas, em nome de toda a classe. Em casa, na hora do almoço meu pai lhe dava um presente, geralmente um colar ou uma pulseira que iria pesar ainda mais em sua caixa de joias.

  • Cão de pedra [fragmento] 

    Dolores Orange
    N.112 | 2024

    em nove meses, preciso escrever um texto sobre a minha relação com minha mãe, um tratamento contra um câncer e a perda do meu útero.

  • Em A teta racional, de Giovana Madalosso, há um momento comovente e honesto sobre a maternidade:

    […] virou-se para mim e disse: mãe sofre, minha filha, você vai ver. Ela nem precisava me dizer, eu já estava vendo. Ou pelo menos começando a ver, porque desde que meu filho nasceu, eu andava sentindo umas coisas estranhas. Era como se o meu emocional tivesse sofrido um corte mais profundo e ganhado uma nova camada, que me deixava experimentar mais amor e mais felicidade, mas também mais medo e mais dor.

  • Depois que você voltar [fragmento]

    Lorena Barbosa
    N.110 | 2024

    O sorriso da minha melhor amiga, a última música da minha banda favorita, o cheiro do café da minha avó e as suas histórias que nunca tinham fim. A descoberta do meu corpo foi numa terça-feira à tarde. O calor subia pelas minhas pernas. O toque, leve como uma pluma, e a sensação de estar pecando. A culpa que me perseguiu por anos. Deveria ter ajoelhado no milho, pedido perdão a Deus. Deus, personagem presente nos meus pesadelos mais assombrosos. Deus, me condenando ao inferno por não acreditar nele.

  • Leve o violão [fragmento]

    Malu Grossi Maia
    N.109 | 2024

    A barriga é reveladora. Não há maneira de disfarçar uma gravidez em público. Parece que carrego uma melancia que anuncia: TRANSEI DESPROTEGIDA! ou: UM PALPITE A QUALQUER HORA! e ainda: TOUCH HERE. Todo mundo pergunta quem é o pai. No início, respondia calmamente que acabáramos de nos conhecer e estávamos resolvendo juntos a situação. À medida que a barriga crescia e o umbigo estufava e descobria que ninguém se importava de verdade, passei a ter prazer literário nas versões.