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Às vezes eu sonho com essa história, talvez tenha sido ela que me trouxe até aqui, à escrita deste ensaio. Minha mãe sempre a contou do jeito de quem via de fora. Vó contava do sobrenatural, do jeito de quem viveu.
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Transando, mas já bem sonolentos, no meio da noite, fiquei com medo de que Miles acidentalmente gozasse dentro de mim. De repente, aquilo me pareceu uma pena de prisão — uma coisa terrível que se abateria sobre nós, sem retorno, o oposto do meu desejo, toda a esperança esvaída. Eu vi nós dois, com nossos sonhos destruídos.
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A infância é longa e estreita feito um caixão e não dá para escapar dela por conta própria. Ela está ali o tempo todo, e todos podem vê-la tão claramente quanto se vê o lábio leporino do Belo Ludvig. Com ele acontece o mesmo que com a Lili Bela, que é tão feia que não dá para acreditar que algum dia ela teve uma mãe. Tudo o que é feio ou mal-acabado a gente chama de belo, ninguém sabe por quê. Não dá para escapar da infância e ela nos acompanha como um cheiro. Dá para percebê-la em outras crianças, e cada infância tem seu próprio cheiro.
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Nas semanas seguintes ao nascimento do meu filho, um vento de março soprou do lago e atravessou nosso apartamento, onde todas as noites eu ficava sentada por horas, numa cadeira de balanço de madeira dura, balançando meu bebê inquieto e olhando as janelas pelas quais mal conseguia ver as sombras dos galhos das árvores sacudindo ao vento. A cadeira rangia, o vento gemia, escutei uma batida no vidro e um bater de asas em torno do peitoril, e tive certeza de que um vampiro estava lá, tentando entrar.
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Observar qualquer ser humano desde a infância, ver alguém surgir, como uma nova flor em botão, cada pétala primeiro enrolada bem apertada nas outras, e depois o afrouxamento natural e o desvelamento, a abertura em uma floração, a vida dessa floração, deve ser algo incrível de se ver; observar a experiência se acumular nos olhos, nos cantos da boca, o desabar da testa, o peso no coração e na alma, a aglomeração de gordura na cintura, nos peitos, o desacelerar dos passos não pela velhice mas apenas pela cautela da vida — tudo isso é algo tão maravilhoso de se assistir, tão maravilhoso de se ver
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O amor faz você funcionar como redondo relógio de ouro.
A parteira bateu em seus pés, e seu grito nu
Tomou lugar entre os elementos.Nossas vozes ecoam, exaltando sua chegada. Estátua nova
Num museu arejado, sua nudez
Assombra nossa segurança. Ficamos ao redor, brancos como
paredes. -
Cecília flagrou Eva chorando no banheiro. Um de seus brinquedos de pelúcia estava jogado na privada. Ninguém viu como ele foi parar lá. A mãe pegou a menina no colo e a levou para o seu quarto, disse que não tinha problemas, logo iriam a uma loja comprar um novinho. Eva, que estava inconsolável, foi se acalmando e se voltou a outra distração.
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Há muito tempo eu nasci.
Já não há ninguém vivo
que se lembre de mim quando bebê.
Eu era um bebê bonzinho? Ou
difícil? A não ser na minha cabeça,
essa questão está agora
silenciada para sempre. -
Ela diz que não gosta de sexo: há qualquer coisa naquilo que a envergonha, que a faz sentir-se ridícula. Tudo lhe parece estranho: preliminares, o tamanho do pénis, o arfar do homem, a queda do orgasmo. Tem vergonha do corpo: embora saiba que é bonita, não gosta do peito, caído, um seio mais pingado que o outro. Diz que passa por aquilo porque é o preço a pagar pelo amor que deseja. Se pudesse, em vez de sexo, faria o jantar – um jantar demorado, condimentado, para várias pessoas. O que ela queria era uma família, era muita gente na mesa, as vozes umas em cima das outras, lutando por se fazerem ouvir – e ela também.