• Labor

    Catarina Barros
    N.99 | 2024

    Sempre que penso no momento em que descobri que estava grávida, vejo-me em frente ao Centro Comercial de São Marcos, embora saiba que o laboratório era no Cacém, e que foi lá, na sala de espera, que abri o envelope. Mas talvez só tenha agarrado no telefone aí, à saída do supermercado, enquanto subia as escadas exteriores, vinda da paragem do 140. Tinha sido naquele centro comercial que, com quinze ou dezasseis anos, informara os meus amigos de que nunca teria filhos.

  • O papel de parede amarelo [fragmento]

    Charlotte Perkins Gilma
    N.98 | 2023

    Faz duas semanas que estamos aqui e não tive vontade de escrever desde aquele primeiro dia.

    Agora estou sentada junto à janela, neste atroz quarto infantil, e não há nada que me impeça de escrever o quanto queira, exceto a ausência de forças.

    John fica fora o dia todo, às vezes também à noite, quando os casos são mais graves.

    Fico contente que meu caso não seja grave!

     

     

  • A fotografia e a maternidade negra

    Qiana Mestrich
    N.97 | 2023

    O legado duradouro da escravidão nos corpos das mulheres negras nas Américas resultou, de forma visível, em algumas das taxas mais baixas de amamentação e, o que é ainda pior, em uma crise de mortalidades infantil e materna. As disparidades raciais que persistem ainda hoje (sobretudo na área da saúde) são efeitos em cascata da propagação das incontáveis violências físicas, psicológicas e sexuais sofridas pelas mulheres negras por séculos, enquanto desempenhavam funções domésticas e agrícolas na condição de escravizadas.

  • Da casa de Iemanjá 

    Audre Lorde
    N.96 | 2023

    Minha mãe tinha duas caras e uma frigideira
    na qual ela preparava suas filhas
    para serem meninas
    antes de cozinhar nosso jantar.
    Minha mãe tinha duas caras
    e uma panela quebrada
    onde ela escondia uma filha perfeita
    que não era eu
    eu sou o sol e a lua e eternamente faminta
    pelos olhos dela.

  • As alegrias da maternidade [fragmento]

    Buchi Emecheta
    N.95 | 2023

    Ainda estava tomada por esses pensamentos sinistros, contando a féria do dia, quando ouviu os gritos de saudação das esposas do senhorio, que ainda não haviam entrado para suas casas.

    “Sejam bem-vindos, nossos heróis!”.

    As crianças correram para fora para ver quem havia chegado. Nnamdió foi junto, misturado às pernas deles, e Nnu Ego alertou: “Cuidado para não derrubar o irmãozinho de vocês”.
    “Mãe! É o pai! Nosso pai! Ele voltou!”.

  • Morra, Amor [fragmento]

    Ariana Harwicz
    N.94 | 2023

    eu me reclinei na grama entre árvores caídas e o sol que aquece a palma da minha mão me deu a impressão de ter uma faca com a qual ia me esvair em sangue com um corte ágil na jugular. Ao fundo, no cenário de uma casa entre decadente e familiar, podia sentir as vozes do meu filho e do meu marido. Os dois nus.

  • A segunda cobra

    Lizzie Simon
    N.93 | 2023

    Uma noite, no começo de abril, num dia especialmente irritante do décimo terceiro mês vivendo la vida lockdown, no bosque do norte do estado de Nova York, cheguei em casa com minhas filhas, de três e seis anos, e encontrei meu marido, Eric, com uma expressão estranha.

  • La Grieta [fragmento]

    Catalina Infante
    N.92 | 2023

    Chega um táxi em que subo impaciente, tem cheiro de pinho e no rádio toca um reguetón como música de fundo. Marín com Salvador, mas primeiro quero parar para comprar cigarros, Blanca – ainda chateada comigo – grita ao motorista, enquanto lhe pede para abaixar a música e abre a janela

  • Quando eu tinha uns sete ou oito anos, minha mãe costumava colocar para tocar, todo dia antes de sairmos para a escola e para o trabalho, a música Greatest Love of All (O maior amor de todos), da Whitney Houston, e cantávamos junto do início ao fim. De pé na sala, logo antes de vestirmos nossos casacos, entoávamos aquela letra que fala de autossuficiência e de perseverança, e encontrávamos, por meio da música, uma espécie de armadura.