• pequeno ensaio sobre nada

    Carolina Junqueira
    N.90| 2023

    Caminhava na rebentação litorânea da vazante de uma lua crescente. Vivo perto de corais, e na areia plana, quando a maré desce, surgem os mais bonitos traços feitos pela água, por pequeníssimos bichos marinhos, algas agarradas em matéria calcária, bolhas de ar saltadas da espuma, correndo com o vento que invade a paisagem há dias. Tudo o que existe marca o mundo, tudo desenha, escreve, se inscreve, tudo move a terra, a água, tudo move outros corpos, abre espaço, faz um buraco, deixa um buraco, tudo tem um nome.

  • Coisas que não quero saber [fragmento]

    Deborah Levy
    N. 89 | 2023

    Enquanto eu mordia a polpa doce e alaranjada do damasco, peguei-me pensando em algumas mulheres – na verdade, nas mães que ficavam no pátio da escola junto comigo esperando a saída dos filhos. Agora que éramos mães, éramos todas uma sombra de nossa antiga existência, perseguidas pela mulher que costumávamos ser antes de termos filhos. Não sabíamos o que fazer com ela, essa moça impetuosa e independente que nos seguia para todo lado, gritando e apontando o dedo enquanto empurrávamos o carrinho de bebê debaixo da chuva inglesa. Tentávamos retrucar, mas nos faltava a linguagem para explicar que não tínhamos simplesmente “adquirido” um filho – tínhamos nos metamorfoseado (um corpo novo e pesado, leite nos seios, programadas pelos hormônios para correr até nossos bebês quando choravam) em alguém que não compreendíamos de todo.

  • Dezessete anos [fragmento]

    Colombe Schneck
    N. 88 | 2023

    Minha mãe veio à clínica. Nunca falaremos do que aconteceu naquele dia. Nem antes, nem depois.

    Eu e minha irmã ainda rimos de quando ela tentou conversar com a gente sobre menstruação. Tínhamos uns dez anos e ela nos interpelou apressada, escondida no vão da porta da cozinha.

    – Ah, meninas, vocês sabem o que é menstruação?

    Desatamos a rir. Ela pareceu tão desconfortável.

  • Caderno proibido [fragmento]

    Alba de Céspedes
    N. 87 | 2023

    Esta noite me sinto sob o peso de uma grave humilhação. Talvez por ter feito uma coisa que até agora eu jamais tinha ousado fazer; ou melhor, não havia sequer imaginado poder fazer. Estávamos sentados na sala de jantar e Michele escutava o rádio; uma música que me fazia sentir leve, sonhadora, me comovia. Não sei que coisa me impeliu a falar; encontrava-me sob o influxo de uma força mais poderosa do que eu, à qual não podia, ou talvez não quisesse, resistir.

  • Marés

    Virna Lins
    N. 86 | 2023

    Falar sobre maternidade é como atravessar as dunas de areia sobre pernas de pau. É preciso encontrar um equilíbrio entre as ideias e compreender sensações até então desconhecidas; permitir ser invadida por uma enxurrada de lembranças e reconhecer tantos sentimentos “à flor da pele” – que transbordam diariamente. Organizar isso em palavras não é simples – faz o outro me ver.

  • As pequenas virtudes [fragmento]

    Natalia Ginzburg
    N. 85 | 2023

    No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber.

  • Quebrar resguardo

    Carina Carvalho
    N. 84 | 2023

    como fosse a carne imenso
    instrumento reverberando vozes que passam a ser

  • Quarto trimestre

    Carina Carvalho
    N.83 | 2023

    sonho com uma praia de areia e luzes vermelhas e pessoas esperando o início de um evento. inquieta, eu percebia que estava ali há muitas horas e não tinha deixado leite para Ícaro. alguém dizia para não me importar com algo assim, que ele ficaria bem onde estivesse. eu seguia receosa e sentindo culpa.

  • Ela adorava minhas mãos, os dedos finos e uma coisa que eu não entendia e que ela admirava: como as falanges superiores dos meus dedos se dobravam. Ela detestava que seus dedos fossem duros e inflexíveis. Engraçado reparar nisso.